Textos Apócrifos

(Textos publicados no Largo das Calhandreiras de Dezembro de 2006 a Outubro de 2010)


ÍNDICE



  1. Carta semi-aberta ao ilustríssimo
  2. E Covelinhas lá tão longe...           
  3. Veritatis Simplex Oratio                
  4. O Bugalhão do Alandroal              
  5. 2007 Odisseia na Praça               
  6. “Também tu, Brutus?”                    
  7. O Filósofo do Casal da Formiga             
  8. Santos da Casa                                         
  9. Crónicas do fim do Verão                         
  10. Não usei nem abusei                                 
  11. É anópsia. Está confirmado!                                                                   
  12. Difícil Ser Humano                                                                                    
  13. A ética e a estética                                                                                   
  14. Natal dos Tristes                                                                                       
  15. O regresso do desejado                                                                          
  16. Semiótica                                                                                                   
  17. Manisfeto Anti-Cunha                                                                               
  18. Abram alas para o Noddy                                                                        
  19. Luzes – Câmara – Acção!                                                                       
  20. O Velho, o Rapaz e o Burro
  21. O Bursaphelenchus Xylophilus
  22. O Erro do Criador
  23. O Ano da Desgraça de 2009?
  24. Vacuidades
  25. Os Cristãos, os Mouros e os Ímpios 
  26. Os Artistas que Paguem a Crise 
  27. Bimbi? Não Obrigado!
  28.  12 de Outubro
  29.  Oráculo
  30.  Alguém viu por aí o S. Nicolau?
  31.  O 5º Poder
  32.  O Processo
  33.  Na pretérita semana houve fumaça
  34.  Inveja Social
  35.  Alvorada
  36.  Alerta Rosa Alaranjado
  37.  Uma Nesga de Oportunidade
  38.  Em Busca da Credibilidade Perdida
                                                                        


1 – Carta semi-aberta ao ilustríssimo


Marinha Grande, 5 de Dezembro de 2006


Caro Ilustríssimo,


Permita que tome alguns minutos do meu precioso tempo para dirigir a tão salvífica e prezada figura, que a mandato do povo tomou em suas mãos o pesado fardo da condução dos destinos deste lugar da história, algumas palavras ponderadamente maturadas. Mas para além do conteúdo, também ponderei a forma e decidi-me por uma carta semi-aberta em virtude, da pouca apetência que V. Exa. demonstra para esta forma de comunicação a qual, revela também V. Exa., preferir ignorar por falta de importância, e depois porque a abertura (da dita carta) revelava-se demasiado escancarada e oferecida o que, convenhamos, nestas coisas da “sedução” entre eleitores e eleitos, acentua o destempero e retira o picante. Prefiro por isso que a desbague nas entrelinhas, se porventura, após filtrada por um qualquer poderoso “anti-virús”, anti-derrapante e hipoalergénico, o sacro-santo comité para a pureza da informação lha facultar.

Antes de mais, queria dar conta a V. Exa. duma particularidade que temos em comum – ambos não votámos em si – o que em nada diminui as expectativas que legitimamente depositámos no seu mandato já que a democracia é para ser vivida, não é propriamente um estado de alma. A expectativa de V. Exa., em relação a si mesmo, resulta da auto-estima que revelou ao candidatar-se, mesmo sabendo que não podia sufragar-se. A minha, resulta da ausência de qualquer reserva mental em relação a quem, de forma desinteressada, decidiu dar de si o melhor ao serviço dos outros.

Posto que está lavrada esta minha declaração de interesses, permita V. Exa. que formule uma constatação.
Quando o Ilustríssimo decidiu coligar-se à direita para governar em maioria (“livrai-nos Senhor de todo o mal!”), estranhei o facto e questionei-me: como poderão dois partidos com projectos políticos tão diferentes, funcionar em harmonia? Pelos vistos nada mais simples. A conclusão/constatação só a vislumbrei, por mea-culpa, confesso, após um ano de mandato e um "rol de merceeiro" sobre a obra edificada - é que de facto nenhum dos dois tem qualquer projecto. A minha visão turvada e eivada de intrincados e complexos conceitos relativos à assumpção do poder, conferido pelo povo e exercido em proveito deste, projectando no futuro os seus legítimos anseios, não me deixou perceber com clarividência a mais simples e crua das realidades: o poder não é instrumental é antes funcional, a estratégia não existe tendo sido substituída pela cabotagem – o importante é não perder o pé mesmo que se perca a oportunidade, a prioridade vai para o remanso, aguardando quedo e calculista o erro do adversário. Mas não fique sentido porque não é o único.

Eu sei que o adversário caiu numa letargia indolente e preocupante, que continua sonolento e marralheiro a jogar na mesma estratégia calculista do erro do outro. Eu sei que uma conjuntura destas não obriga a esforços nem a aplicação redobrados. Eu sei que tudo caminha sem que ninguém pronuncie um “aí”, mas no fundo, no fundo, quem perde com tudo isto? A nossa terra! Um ano perdido não significa pouco, significa a perda irreparável de 365 dias gastos sem se antecipar o futuro, sem se decidir, sem se discutirem ideias generosas, mais preocupados em demonstrar que os outros são maus e que lá p’rá frente tudo se há-de resolver.

Ilustríssimo, sem qualquer carga simbólica e despojado de qualquer pudor irrelevante, deixe-me que lhe fale ao coração. É que tão preocupante quanto o que atrás ficou dito é a falta de confiança que se transmite, a falta de alegria, de energia, de esperança, de vontade, de coragem, de convicção num projecto em que se acredita, num sonho, no sonho, na utopia - na utopia, porra! Onde está o sonho camarada? Onde está? Que é feito do nervo? Que é feito da fulgência? Onde está a vontade de mudar? Onde está camarada? Será que sucumbiu à curvatura da vida? Será que não merecemos todos um pouco mais? Mostre-me que estou errado, mostre-me que quer fazer desta terra uma terra de homens e mulheres felizes, de gente solidária, de gerações que se orgulham do seu passado e que se querem projectar no futuro! Convença-me, homem! Convença-me que o 18 de Janeiro, o 25 de Abril, o 1º de Maio não foram acidentes de percurso! Convença-me a votar em si nas próximas eleições, convença-me, porra! Porque se o fizer, estou certo, é porque deu a esta terra o rumo e o alento que ela precisa, o amanhecer que todos ansiamos vislumbrar.


De V. Exa. atentamente, subscrevo-me com elevada estima e consideração;





2 – E Covelinhas lá tão longe...


17/01/2007

Já que a alma está perdida, negrinha que nem um carvonito pronto a entregar-se ao demonarca, a ser lançada no aqueronte flamejante do codenamento, pois castigue-se o corpo no triclínio, com lautos manjares, assaduras, fritaduras, esturgídos, iguarias conventuais e generosos néctares”. Às malvas com as pílulas de salmão e com o Enalapril 20 mg, o terror da hipertensão.

E foi sob o signo da boa mesa e da aconchegante hospitalidade com que a família Correia Faria sempre me acolhe, que rumei a Covelinhas, uma edílica e acolhedora aldeia na margem direita do Douro, para passar as Festas.
Contei os dias da demanda - “ora, um para ir (não conta!), mais um para vir e cinco para pernoita” – seis dias fora, dividi por dois e juntei três pares de peúgos e igual número de cuecas Gitanes no fundo do pequeno saco de viagem - direito e avesso, direito e avesso, direito e avesso... que a coisa não está para luxos e o banhito diário sempre poupa na roupa! Por descargo de consciência preveni-me com mais umas “truces” Abandeirado (a estrear!) para o caso da visícula dar de si e uma inoportuna crise intestinal desarmar-me em pleno reveillon. Juntei a escova de dentes, uma descartável da Gillette e dois ou três livros. Está a trouxa emalada, p’ra Covelinhas a toda a mecha!
Foram cinco dias memoráveis naquela aldeia quase comunitária, onde ainda, praticamente, tudo se partilha. Não há coutos, nem coutadas, nem feudos. Há gente igual entre iguais. Até Lucinda Correia Faria, a minha anfitriã, mulher de incontáveis talentos que a afamaram, entre os quais a mestria de transformar os “frutos da terra” em sabores do céu, há muito que passou de “simples mãe da família Correia Faria” a património da aldeia. Que inveja!
Para perder as peneiras bastaram-me trezentos e tal quilómetros de regresso e uma placa a indicar “Marinha Grande”. Aqui, ao contrário de Covelinhas, há campeões da verdade, da razão, da democracia, do anti-fascismo. O sectarismo doentio que há muito adoptámos como cartilha, turva-nos a mente e faz-nos esquecer o essencial. A generosidade e abnegação colectivas dos que lutaram e lutam por uma terra com grandeza e alma, feitos heróicos em nome de valores e princípios defendidos com a própria vida, são transformados em bandeiras de outras lutas menores.
Enquanto não olharmos para o futuro com a mesma vontade colectiva de vencer e de honrar o passado, nunca chegaremos aos calcanhares da pequena aldeia de Covelinhas, na margem direita do Douro, a dois passos do Peso da Régua.





3 –  Veritatis Simplex Oratio


16/02/2007

E como qualquer esquadrilhado morredoiro, caí à cama fulminado pela maldita gripe, mas não sem ter apanhado susto de cova! É que os sintomas da maldita influenza revelaram-se após escapadela noctívaga a galinheiro de suspeito famanaz. A convite do compadre Horácio, alternadeiro profissional, pinchando entre a respeitável vidinha conjugal (classe “bodas de prata”) e as prestimosas casas da especialidade, aventurei-me, quase contrariado, a um intercurso “revigorante” - segundo palavras do próprio compadre. “É uma vez sem exemplo Relax!”, garantiu ele. Jesus! O ambiente era abafado, a música era ruim, as galinhas eram de aviário, o perfume era rafeiro e a “chãmpanha” caríssima e ordinária (setenta e cinco euros a botelha!). Salvou a noite uma visão extraordinária e inesperada, de rebenta-riso. Um conhecido cidadão da praça, figura de alta craveira moral, intelectual e filosófica, encharcado em whisky, depenicando entretido e despreocupado o que parecia ser uma loira pernilonga. “Então por aqui doutor?” perguntei eu acercando-me do sujeito. O janota encarou-me, engasgou, tossiu convulsivamente, ruburizou, cambaleou, tombou redondo. A pernilonga desatou aos gritos e desfaleceu por simpatia. “Rais-parta-o-homem que se espicha” pensei antevendo um fim trágico para a minha abordagem. E quando já assustado me preparava para lhe aplicar uma massagem de reanimação cardíaca, umas murraças de punho fechado nas peitaças, o homem recobrou do ameaço e prostrando-se a meus pés suplicou:“não conte a ninguém que me viu aqui, por favor!...”. “Fique descansado doutor, que até melhor oportunidade a minha boca é um túmulo!”, sosseguei-o, guardando cuidadosamente o trunfo na manga, à Luis de Matos.
Felizmente confirmou-se, a influenza não era aviária, era simplesmente ordinária - “ponche quente, pachos de álcool e nada de correntes de ar” prescreveu o doutor das urgências-enquanto-as-há sem olhar para mim. Segui escrupulosamente a indicação do douto e baixei ao leito.
Está claro de se ver que tempo é coisa que não me tem faltado e para sobrepujar o tédio e matar as horas, quase tudo serve. Olha, por exemplo, tenho lido novelas de produção caseira em publicações sem critério. E embora, por norma, os argumentos sejam maus e os actores, fracotes, apresentem sintomas de acrofilia, tenho-me entretido. Entre outras ando seguir uma cuja estória roda à volta da mentira – um diz que o outro é mentiroso e o outro diz que o um é que é mentiroso. Mas nesta novela adaptada à vida real tudo é inconsequente e chamar mentiroso a alguém parece ser a coisa mais banal do mundo. A suspeita e a mentira são invocados sem acanhamento e usadas para intoxicar, desinformar e urdir tramas foleiras. No tempo em que a honra era um valor e os homens tinham carácter, estas questões eram tratadas a punho, na praça principal, junto ao pelourinho. Mas nós por cá como não temos pelourinho, vá lá, que por uma vez sejam verticais e travem-se de razões sob o olhar atento do busto do Guilherme Stephens. Mas por favor não nos deixem baralhados em relação a quem mente.
Enquanto isso, eu e mais quantos mil, lá vamos fungando, enxugando o pingo ó nariz e chuchando rebuçados do Dr. Baiar para acalmar a irritação.



4 – O Bugalhão do Alandroal


22/03/2007

Vicente Bugalho era raposa velha. Astuto, sabido, teimoso, matreiro, surdo de quando em vez, taralhoco q.b., educado no trato, petisqueiro e bom prato. Quando lhe perguntavam de alhos, respondia bolotas, que de bugalhos já lhe chegava o nome pelo qual respondia a família. E quanto aos alhos, não é que não tivesse resposta de despicadeira, mas preferia enrolar e encanar a perna à rã. Às tantas a pergunta estava esquecida e a resposta que mais lhe convinha, dada. Finório!
A princípio todos julgavam que não dizia coisa com coisa, mas a arte de rodear o tema que aprendera com o avô paterno, Geraldo Bugalho “O Regedor”, começou a levantar suspeitas quando perceberam que por detrás da manha havia patranha. Sabido!
A família, “os Bugalhos”, apesar de o respeitarem e de se absterem de qualquer apostilado público, em privado lá íam dizendo que Bugalhão, como habilidosamente o tratavam, estava a ficar cada vez mais casmurro, migalho e com falta de vistas. Mas se alguém concordava, logo tocavam a reunir e não hesitavam em pegar no cajado pelo abuna. Pois, mas a questão é que todos achavam que Vicente devia fazer partilhas e descansar sossegado pelo resto dos dias em sombra de sobro, olhando a perder de vista a planície entrecortada por suaves montes. O segundo dos seus nove filhos, Bertolino Bugalho de seu nome, de quando em vez lá tocava no assunto “o mê pai devia era descansar e deixar de se maçar com tanta canseira” ao que o patriarca, sempre acompanhado pelo canito, fiel rafeiro que o acompanhava para todo o lado, respondia em voz forte “do mê monte nã saio!”. O canito abanava o rabo em sinal de concordância e lá corria a apanhar uma côdea que Bugalhão lhe atirava, cumprindo o seu papel de companhia. Bertolino insistia “mas mê pai, qualquer dia partimos todos e o monte fica cá, temos de acautelar p’rós netos. Olhe que o futuro não espera…”. “Deixá-lo” dizia Vicente, “já com mê avô foi assim, com mê pai tambêm e cómigo tambêm vai ser! Até ver quem manda aqui sou eu!”.

Os anos iam passando, as forças iam sumindo e o monte lá continuava quieto, às ordens de Vicente Bugalho e do seu canito, à espera que o tempo se encarregasse de fazer as partilhas do que sobrasse.


Esta história, sem moral, contava-a minha bisavó, Laurinda Bugalho Carloto.






5 –  2007 Odisseia na Praça


17/04/2007

Fez sábado de Aleluia oito dias que cumpri um ritual que há anos deslembrara. Desde que Dona Cintinha foi devolvida-sem-retorno à sua mamã (e minha prestimosa sogra!), por manifesta “falta de condições psicológicas para aturar um matóide da pior espécie”, que não madrugava pelas sabatinas para ir à praça.
Espreguicei-me a primeira vez marcavam os ponteiros sete e dez, mas só me ergui, constrangido por um incontrolável aperto na bexiga e com a uretra quase alagada, já o das horas tocava no oito. Levei a coisa a rigor como noutros tempos - tomei banhoca, escanhuei, untei os sovacos de desodorizante e vesti o fato de treino Desportex, impecavelmente vincado pela Lurdes Rata, a minha nova mulher a dias. Sobre uma camisa às riscas com três botões por casar, casaco de fato de treino aberto a três quartos, a adivinhar as peitaças, lá parti eu de bicicleta para a praça, exibindo com garbo um magnífico fio de oiro com a cruz de Cristo e um corno em marfim de dimensões generosas.
“É carago, Relaxoterapeuta, não foste à cama ou quê? Onde é que o vacão vai todo apinocado?” disparou Maria Suzete, calhandreira profissional do Bairro Mariano, mal tinha eu transposto o portão do quintal. “Foscasse Suzete, já um gajo não se pode levantar cedo para ir à praça. E a seguir vou à comprativa. Queres que te avie alguma coisa?”, “não vale a pena que ainda ontem fui ao Lider com a minha comadre”, despachou a vinagreira.
Chegado à praça decidi introduzir-me no funcional e arejado equipamento pelo “portão do peixe”. “Ó freguês, ó freguês, olha o carapau fresquinho!”, esganiçava uma pexina entradota acenando com dois exemplares meio esverdeados, agitados freneticamente nas mãos erguidas acima da cabeça. Olhei em redor, um asseio, um brinco, digno duma vistoria de olho arregalado dum zoiatra atento e dum acipreste voluntarioso. Ainda aprecei um robalote p’ra escalar, dos poucos que não eram de aviário (afiançou-me a pexina), mas quebrou-se-me logo o talante ao ver a balbúrdia que reinava na baiuca imunda e sarrosa - peixe, tripas, escamas, moscas, baldes de água suja por onde passava todo o “pexinho” amanhado, mais moscas, uma balança suja e desconchavada, um saco com notas e moedas (e escamas), uma caneca de café, restos de pão do pequeno almoço, uns tamancos e uma tabela de preços com moscas. Literalmente “uma caldeirada”. Mas pior fiquei quando olhei para o chão e vi a porra das calças de fato de treino, impecavelmente vincadas pela Lurdes Rata, e as alpercatas beiges, completamente encharcadas e decoradas com escamas. Francamente irritado não consegui conter um “foscasse, já me caguei todo!”. Pus as calças por dentro da meia branca com raqueta de ténis e segui caminho desconfortado.
Deixei para trás a gritaria das pexinas, mais as moscas, mais o peixe de aviário, mais as tripas, mais o ambiente climatizado, mais-grau-menos-grau, mais os baldes de “águas correntes” e mais as escamas, e entrei na “nave” principal da praça. Leguminosas, tubérculos, frutas, verduras, “o que me apetecia mesmo era um caldinho verde!”, pensei. Numa busca rápida tentei localizar a D. Alice do Valado, ou a D. Conceição de Amor, ou a Edite dos Cavalinhos. Em vão. “Já não conheço ninguém”, conformei-me. Foi então que ouvi uma voz trémula: “não leva nada?”. Virei-me e fixei um rosto cujos traços há muito não via mas que me eram familiares. “Então não se lembra de mim?” perguntou a anciã. “Sou eu, a Velhinha das Maçãs”. E era. “Aos anos que a não via…”, suspirei de saudade, “e eu a si”, retorquiu ela. “Então e a sua senhora, a dona Cintinha?”, “Está melhor que nunca!...”, despachei eu. “Então e vossemecê, como vai a venda?” questionei-a. Foi então que a Velhinha das Maçãs começou a desfiar o rosário. Contou-me que era a última (e a única) vendedora que ainda cultivava o que vendia, que o resto do pessoal não estava para isso e que compravam tudo aos espanhóis para depois venderem na praça e alguns nas suas lojas. Queixou-se da falta de fregueses, dos supermercados onde se vende tudo o que ali se encontra “e a preços mais em conta”, da falta de condições, e mais isto e mais aquilo e aqueloutro. A ladainha terminou como seria suposto, com a previsível e invariável frase “antigamente é que era bom!”. “Pois era, mas já lá vai…” rematei eu. Acabou por me oferecer uma couvinha p’ró caldo verde, com votos de “muitas felicidades e cumprimentos à dona Cintinha”. “Serão entregues!” afiancei-lhe despedindo-me da Velhinha das Maçãs.
Retomei a marcha e caminhei para nascente sem ter de romper por entre magotes de povo, como noutros tempos. Fui ao pão. O mesmo esmero, o mesmo asseio, o mesmo rigor regulamentar, aqui com a nítida vantagem dos farináceos não terem escamas nem cheiro a “pexinho”. Broa, bolos, enchidos, queijos. “Eram dois de centeio e uma broa, se faz favor”, pedi eu à jovem padeirinha, vestida com uma bata que carregava mais nódoas do que pecados a minha almanicha. Mostrou-me um sorriso com menos três dentes e enfiou a mão, envolta num saco de plástico “higiénico”, no ceirão do pão. “Aiiii, aiiii, um rato! Aiiii, aiiiiii, acudam...”. Rapazes, quando vi a cachopa a desfalecer e um ratinho empoleirado no cesto, saltei p’ra dentro da banca em socorro da catraia, espetei dois pontapés no ceirão, foi rato, foi padeirinha, foi pão! Pus cobro à aflição. O povo rodeou a banca, a padeirinha recobrou o ânimo e pasme-se, começou a insultar-me: “já viu, deu-me cabo da fornada! E agora? Parece impossivel, este espalhafato só por causa dum ratinho! E agora, quem é que me paga o prejuízo? E agora?”. “Agora, vou-me embora!” atirei eu já com a mostarda a subir-me ao nariz, “olha qui carago, vou em socorro da menina e ainda sou eu que tenho a culpa de estar um ratinho no poceiro do pão? Já não chegavam as calças a feder a peixe, ainda caguei o casaco de fato de treino com a porra da farinha!”. Senti-me injustiçado. Virei costas e deixei “meia praça” a discutir o sucedido e a dar razão à padeirinha. O costume...
Varado, contornei o recinto para me ir embora “por hoje e para os próximos dez anos já chega de praça!”. Absorto nos meus pensamentos de auto-comiseração nem reparei que entrei na zona das aves de criação. Apressado tentei alcançar o mais rapidamente possivel a porta da rua para evitar uma infindável sessão de espirros alérgicos. Mas a visita de estudo estava destinada a terminar em beleza. O chão, anti-derrapante e lavável, desinfectado três vezes ao dia, como obriga o normativo aplicável, encontrava-se abetumado de poia de galo, galinha, pintainho e pato. Nem vos conto. Perdi o pé numa cloaca avantajada e espalhei-me ao comprido, de bruços, sob a macia couvinha do caldo verde e meia dúzia de ovos duma senhora que estava a comprar pintos. Uma desgraça. Uma merda. Uma autêntica merda foi como ficou o fato de treino e mais a bela da couvinha oferecida pela Velhinha das Maçãs, decana dos produtores dos campos do Liz.
Ferido no orgulho (e numa asa), levantei-me e pontapeei com toda a fúria o que sobrava da couvinha. Passei pelo corredor das flores sem lhes respirar o pólen, para evitar novo ataque alérgico, e apressadamente cruzei a porta da rua com o alívio de quem acorda dum pesadelo. No preciso momento em que transpunha a soleira, em sentido inverso, um senhor já de idade, cabelho grisalho e pose institucional, envergando uma impecável réplica da fatiota de D. Quixote de la Mancha, entrava ufano e triunfal no mercado, saudando graciosamente vendedores, vendedeiras e fregueses, seguido de perto por um minorca barbudo que lhe servia de escudeiro. Ainda hoje estou para saber quem eram aquelas figuras saídas do livro de Miguel de Cervantes.
A caminho de casa, com a auto-estima em farrapos e o fato de treino em frangalhos, matutei na questão: “Será que vale a pena perder tempo com esta coisa do mercado? Por mim está o assunto arrumado! Enterrado! Vou à “comprativa” que é mais barato!”.






6 –  “Também tu, Brutus?”


30/04/2007

Abril floriu, a Primavera rompeu o céu cinzento de Inverno, o Equinócio irmanou os dias e as noites, tornou-os iguais, desabrochou o cravo rubro da Liberdade - floriu a esperança, grelou o discurso. O psitacismo deitou grelo, não um grelo úbere, antes uma incontrolável mas previsível verruga arapuca.

Do cimo da varanda dos Paços do Concelho a centúria saudou o povo. O Presidente democraticamente eleito, demais autarcas, acólitos, capatázios, emplastros, empresários de espírito de Abril, imbuídos da mais fina e imaculada cultura democrática, impregnados do delicado perfume da liberdade, devolvem à cidade o esplendor das comemorações, a fulgência doutros tempos...
Barba non facit philosophum, é bem certo, mas o povo aguentou a pé-firme, para ouvir o que lhes tinha para dizer o mestre-de-cerimónias. Quando tem tempo o povo sabe esperar.
O exórdio nem correu mal, banal, como habitual, um pouco viscoso mas, fluído. A dinâmica e a capacidade de empolgar não são coisa que se adquira com facilidade, sabe-se, são um dom com que o Criador assinala os predestinados, o que manifestamente não é o caso.
Bem, mas o pior, pior, estava para vir. A “ocasião faz o ladrão” e o parlador não se fez rogado. Passado o intróito seguiram-se pétalas de neo-sectarismo atípico, desenterrado sempre que convém identificar e afrontar o inimigo para não nos olharem para o umbigo. Clamando contra outros “neo”, os do grande capital (sim, que os do pequeno são uma bênção dos céus!…), o iluminado não resistiu a falar em nome da classe operária, a dar conselhos, a alertar os assalariados desatentos para os perigos dissimulados que apenas a bola de cristal da ortodoxia desvenda ante tempus, na saúde e na doença, no trabalho e no emprego, na educação. Moralista, discorre sobre os pecados da carne, da carne de meninas de alterne, de rameiras que ocuparão sem pudor e sob o olhar complacente dos obcecados pelo défice, as escolas dos meninos. Adulteram-se e aviltam-se os valores morais duma sociedade justa mas dá-se às putas o direito de por uma vez na vida frequentarem um estabelecimento de ensino oficial.
Mas o imaculado estava impenetrável e “avante camarada”, zurziu sem dó nem piedade neste governo de classe (estranho epíteto vindo de quem vem…) que procura na construção dos centros educativos mais umas negociatas para o apetite voraz do grande capital, zurziu sem dó nem piedade nos governos anteriores que também esbulharam o povo (sem que o compadre se apercebesse da alusão a Durão e a Santanão), zurziu sem dó nem piedade nos magnatas da comunicação, da propaganda, da manipulação, Balsemões e Tózés, que o tamanho não conta, o que conta é a intenção. Enfim, e com tanto por onde zurzir…
Foguetes anunciando fim de festa e já Carla Alexandra, aluna do 11º ano, volta a casa sem saber o que o presidente pensa do futuro, Joaquim Rosa, vidreiro desempregado, sem saber o que se pode fazer para salvar a indústria vidreira, Cármen Sousa, viúva, pensionista, sem saber quando poderá ir de Picassinos ao Centro de Saúde nos transportes públicos, Afonso Prata, artista, sem saber qual é a política cultural para os próximos anos, Claudete Bernardes, comerciante, sem saber qual o futuro do Centro Histórico, Marco Rafael, fresador, sem sabor como a indústria de moldes vai ultrapassar a crise, Zélia Aires, universitária, sem saber se um dia poderá voltar à sua terra, Relaxoterapeuta, andarilho, sem saber se vale a pena…

É bem certo, os nossos prosélitos políticos parecem talhados para esbanjar oportunidades, mas o povo não dorme. Quando tem tempo o povo mantém-se vigilante. E não me venham com a conversa da “legitimidade democrática”, porque o uso que faço da pena é da mesma natureza, se o presidente debita o que mais lhe aprouver também eu posso discordar do destempero da prosa. Tenho dito!






7 –  O filosofo do Casal da Formiga


23/05/2007

“Vamos ajudar o relaxoterapeuta a editar um livrinho de ficção... talvez fosse mais útil que escrever aqui... fica a sugestão desinteressada.”

De forma (igualmente) desinteressada;

Não sou erudito! Conversa de encher chouriço não se me ajusta, gosto mais de pegar à barbela, dar pontapés nas canelas dos ineptos, zurzir nos néscios        governantes de cartola, morder nas orelhas dos meus émulos d’estimação e beber uns copos de generoso tinto às suas saúde e longa vida.
Talvez seja do estilo, entre o gongorismo e o conceptualismo, talvez não seja do inteiro agrado de algumas Eminências Pardas, mas definitivamente Reverendíssimas. Até aceito, “gostos são gostos, porra”. Porém, versado em letras não sou e quanto à arte da ficção, não a domino. Sou tão somente um filósofo popular pretensiosamente vaidoso e presumido, isso mesmo, Relaxoterapeuta - o filósofo atilado do Casal da Formiga. Pois que isso da escrita, fiquem V. Exas. sabendo, cansa, obriga a esforço sobre-humano, aspirinas e cálicezinhos de anis para abafar as dores d’alma que se apoderam da gente - dos que escrevem, bem entendido, que eu já não tenho idade nem escalho para essas artes superiores. Pois fiquem V. Exas. sabendo que a escrita é coisa sofrida, não é para a minha enquistada e sibilina pena que me corre sem destemor, nem dor, nem ansiedade. Escrevo apenas, porque não posso falar…
Talvez fosse mais útil escrever um livrinho, talvez, quem sabe, um livrinho de capas azuis e letras amarelas - já estou a imaginar, estilo “ficção para gente inteligente”, tipo “Margarida Rebelo Pinto mas... em bom!” - «O Meu Primeiro Pipi», com prefácio do intelectual das urgências e ilustrações do pintor do reino. Pois. E depois? Como é que iria a minha intrépida opinião fazer fé pública? E depois? O que é que o Sr. Director punha lá no “pasquim”? E depois? O que é que me iriam sugerir a seguir? (Desinteressadamente é claro!). Que escrevesse a biografia do Preste João das Barbas, o aristodemocrata feito reizinho prepotente  e  pingão “contra o grande capital e contra as empresas municipais: marchar, marchar”? Irritam-me estas coisas da superioridade moral e intelectual. Mas desde quando é que não se pode ser cidadão? E desde quando este Largo é pequeno para escrever o que cogito? E quem é que disse que preciso de ajuda para alguma coisa, além da ajuda para passar a ferro a porra das camisas e das calças?
A democracia, a inteligência, a cidadania, não são exclusivo nem património de ninguém e não há bons ou maus locais para as quinhoar! Há isso sim bons e maus cidadãos, assim como há bons e maus políticos, bons e maus arciprestes, bons e maus arquiatros e, por muito que isso custe aos mais empedernidos, bons e maus comunistas. E quanto a isso meus caros, “calhou-nos na rifa o penico” como diria o velho Comendador Borges Mendes, todos comem na manjedoura da democracia, ciosos de que não falte sustento à família. E tal como qualquer condenado que deixa à porta da prisão todos os pertences, também eles deixam à “porta dos seus mandatos” as convicções, os princípios e, sobretudo, a inteligência. Sobretudo a inteligência. Só neste reino da fantasia nada tem consequência – o parque contaminado descontaminou por obra e graça da nova brisa de liberdade que sopra de Leste; o Cristal Patium carece de intervenção de milhões enquanto  na velha Resinagem  co-habitam, vendedores, consumidores e ratos nojosos, à margem de qualquer regra “higiénico-sanitária”, fora do alcance de qualquer ensaio de douto perito; a TUMG vai p’ró caixote das misérias porque não possui alvará para transportar as criancinhas da escola em camiões de caixa aberta “que eu não estou mais para pactuar com ilegalidades”. O rei não vai nú, o rei vai de peúgas do avesso, coroa, ostentando de forma desplicente um tomate descaído. Às favas com o politicamente-correcto que estou farto de sofrer calado!
Para se ser homem, é necessário plantar uma árvore, fazer um filho e escrever um livro dizem os entendidos. Se a árvore murchou a culpa não foi minha que a comprei bem viçosa na feira de Pataias, por dois contos (outros tempos!). Dos filhos, não me pesa consciência que bem tentei, de forma insistente e corajosa, sem olhar a compartes nem a despesas (se não pegou, tivesse pegado que bem me esforcei). Já quanto ao livro, desinteressadamente devolvo a ideia à precedência, prefiro isto – filosofar!






8 –  Santos da Casa


17/07/2007

E nem o dilúculo do estio trouxe o calor há muito desejado pelos apóstatas

O astro rei, envergonhado, não vai nem vem, lembrando outros astros menores de enredos caseiros, menos luminosos, é certo, mas não menos flamejantes (a avaliar pelos relatos das cortes). Mas o Sol, dizia eu, tem-se mostrado reservado, espreguiça-se de quando em vez, boceja e por fogachos passa pelas brasas, ocasião de imediato aproveitada por uma qualquer arquibesta para proceder à ignição que deixa, sem dó nem compaixão, pelos matos e pelas matas, um rasto de cinza e fumo – empalá-los com um tição em brasa era modesta guloseima para bárbaros que perpetram tamanhos crimes!
No entanto, bem vistas as coisas, as forças celestiais estão em comunhão com o poder temporal. A natureza está com o governo da nação e a ecclesia com o governo da autarquia, tudo por intercessão do príncipe dos apóstolos, S. Pedro, o santo pescador que fazia praia p’rós lados das Valeiras, atirava aos robalotes junto à escarpa do Penedo da Saudade (... saudade, ó saudade de comer pexinho ali pescado a salvo da merda dos porcos dos Milagres, que a poucos parece importunar, é certo!).
Mas vamos à explicação dos factos, à manifestação do dedo divino através da intermediação do dito Santo - e o Senhor nem lhe pedira tanto mas ele quis mostrar serviço e conseguiu juntar sob o acropódio da mesma pedra angular o simplex e o centralismo democrático, a flexisegurança (da Evax) e a luta de classes (da WWE). Reparem bem. Enquanto o Senhor Primeiro Ministro José acordava com os russos os prestimosos serviços dos Beriev, bombeiros dos ares à razão de 2,5 milhões de euros (mais despesas de envio), em paralelo, confirmava com o bento Pedro, colega de curso de Antímio de Azevêdo, umas morrinhas para burrifar o cantinho ocidental da península, a troco de jejuns e abstinências infundidos ao rebanho que apascenta em prados depenados. Por sua vez, o Senhor Presidente da Câmara João, seguindo as pegadas dos antecessores, enquanto vai deixando cair em apatia agonizante a praia do apóstolo, iluminado pelos valores da tradição associa-se à refundação da já refundada festa em honra do padroeiro, festa rija (pois claro!) para o povo esquecer a míngua, esmolinha ao Santo, procissão com andor e pálio, barraquinhas com bebes-e-comes, papas e bolos, majoretes e bombos, cabeçudos e anões, tudo apadrinhado pela Sra. Dona Primeira e abençoado pelo Cura da Freguesia. O povo regozija-se com o arraial, o Santo agradece o empenho e promete saúde e longa vida à coligação, por momentos tudo parece ganhar vida e cor, alegria, quem diria! E a seguir? Ah, a seguir vai tudo a banhos que ninguém está para se maçar com a chatice da política, é quase Agosto e os alfacinhas já levam pelo menos uma semana de avanço (que o digam o Portas e o Mendes).






9 –  Crónicas do Fim do Verão


23/08/2007

Após o justo descanso, a aliviação das inalações nasais por termas de Alcafache e as estimulantes fricções com pindas e grainhas de uva, numa magnânima experiência das bondades e virtudes da vinoterapia, regressei ao sossego do Casal da Formiga para receber o Outuno com a paz e o conforto que a saison aconselha e que os ossos impõem. É tempo de encomendar a lenha de sobro enquanto a chuva não lhe engorda o preço, de preparar a chaleira e de colocar na mesinha ao lado da solitária poltrona da sala, uma aconchegante pilha de livros por descobrir, enquanto o Inverno se faz anunciar. Apesar de todos os defeitos continuo prevenido e acautelado, virtudes que parecem cada vez mais em desuso.
Este ano, a pouco tempo de atingir a idade da pré-reforma, prestes a alcançar o estatuto de trabalhador dispensável aos olhos dum modelo económico implacável - mas que não me livra da condição de contribuinte indispensável - e finalmente aliviado da pensão de alimentos com que anos a fio tenho alimentado a azémola (e a progenitora!), decidi mimosiar-me com umas vacances à colau, um mês de boa cama, de boa comida, de bons néctares e de bons tratos. As análises ficam para depois do Natal que até lá o S. Martinho, os Santos e dois ou três repastos de indefectíveis anibrestes, requerem a disponibilidade total das papilas, das glândulas e das entranhas, sem medo de prevaricar, sem medo que me assalte a má consciência por violação sistemática das recomendações do doutor. Oxalá os aparelhos olfactivo, digestivo, circulatório e os sensores de estacionamento funcionem e estejam à altura da degustação, enquanto o reprodutivo entra em ibernação até ao próximo estio – como diria o comendador Joe-da-Madeira, reputado mecenas e sincero compagnon de route dos trabalhadores da PT, cujos neurónios foram substituídos (com sucesso) por pilim, “o meu vício de verão é fazer o amor”. Palavras sábias.
Alcafache, Sátão, S. Pedro do Sul, Viseu, Vouzela, percorri o Dão-Lafões de lés-a-lés, umas férias inesquecíveis por terras que há muito não revisitava – desde os tempos em que comecei a vender candeeiros com pingentes e mais tarde ampolas, seringas e provetas. Viajei por águas termais, medicinais, sulfurosas, por generosos vinhos de sabores e aromas frutados, esculpidos com sabedoria e com gosto a partir de nobres castas portuguesas, afinados em madeiras virtuosas. É interessante como águas e vinhos partilhando o mesmo bispado se completam em harmonia, cada qual cumprindo a sua nobre função sem contudo perderem a identidade, única e inconfundível. Virtudes da natureza e da democracia.
Da vitela à Lafões, suculentos nacos de carne com o tempero certo e o dedo de quem sabe, guardo gratas recordações e fartas digestões. Mas o que descobri este Verão na riqueza da boa mesa beirã, foi um divinal pudim conventual a que dois dedos de azeite extra-virgem da Cova da Beira acrescentavam um inenarrável requinte e uma riqueza digna de abastado camarista - a diferença está muitas vezes no pormenor que alguns cultivam com mestria e que outros com sobranceria ignoram.
Diz o povo que o que é bom depressa se acaba e um mês de requinte esfumou-se num ápice. Sobra ao andarilho anacoreta, de volta à terra que teima em amar, a alma confortada, a barriga cheia, o nariz desentupido e as muitas saudades da “vizinhança”. Mas por tudo o que viu, sentiu, cheirou, provou, por toda a admiração que sente pelas gentes beirãs que transformaram (e transformam) o interior do país num local onde vale a pena viver, este andarilho também volta com uma imensa esperança de que o exemplo por cá se replique, para que os dias passem a ser diferentes e o olhar se projecte no futuro.
Consultado o compadre Zé Cipriano, escritor popular da Fonte Santa que por cá estiou entre Água de Madeiros e o Tremelgo, sobre o que se passou na paróquia durante a minha ausência, obtive a seguinte resposta: “para além dos cocós que fluem naturalmente movidos pela gravidade e pelos espasmos flatulentos dos intestinos e dos movimentos sociais de esquerda e de direita, animais, minerais e vegetais bamboleiam-se ao sabor do vento e da brisa marinha, despreocupados, nada mais se passa – non passa niente – como se o tempo voltasse atrás e tudo fosse reversível”. Fiquei reconfortado e peguei uma vez mais no livro de Cervantes para… relaxar.




10 –  Não usei nem abusei!


12/09/2007

“Mas que grande porra!”
Foi desta forma contida que reagi ao camarço. Não havia lugar para dúvidas, o meu velho e fiel Ford Capri bordeaux, 1.300 cc de volume de deslocamento de motor e 82 nervosíssimos puro-sangue que nunca me deixaram encalacrado, cincava pela primeira vez - coisas da idade! Por descargo de consciência ainda abri o capot e dei três pancadinhas no motor e duas na bateria, com um pequeno martelinho que trago sempre no porta-luvas, juntamente com um canivete suíço e com um concho pequenino que uma ocasião trouxe de Estremoz. Em vão – como diz o povo “a ignorância é atrevida” – e o Rocinante, obviamente, não reagiu ao estímulo do martelinho.
O dia começara cedo. Tinha-me comprometido com minha tia Amália do Camarnal, mulher de oitenta e dois solstícios cumpridos, assídua frequentadora e contribuinte líquida das sessões de matrafício da Sra. D. Quixota, à Ordem, que estaria o dia inteiro por sua conta e risco. Pois sendo do lado paterno a única tia viva e sofrendo a criatura de problemas de circulação nos membros inferiores, de artrites, de artroses, e uma vez que não tem qualquer meio de transporte ou quem lhe valha, desde o dia em que o Senhor a chamou à viuvez e levou à sua companhia tio Alípio Saragoça, mestre lapidário de gabarito na também falecida Ivima durante mais de quarenta anos, que volta-e-meia requisita os meus préstimos de chauffeur contra o pagamento de uma simbólica propina, um coelhinho guisado com ervilhas como só ela sabe, como nos tempos em que a família inteira cumpria a tradição da espiga e o precioso tacho, preparado pela tia Amália, abafado em jornais e escoltado por uma guarda pretoriana de respeito, rumava ao Tremelgo onde era sacrificado com devoção.
E agora? Se ao menos houvessem transportes públicos… A ideia passou-me pela cabeça quase como o flash dum kodak disparado de sítio indeterminado, surpreendendo-me tanto pela forma como me ocorreu quanto pelo lapso em que se esfumou. Nunca me assaltara tal pensamento. Mas também nunca me tinha visto privado de transporte, verdade seja dita. Bom, avancemos para o plano B: talvez o vizinho Zé Silvestre me empreste o Boca de Sapo. Dirigi-me apressadamente para a casa do lado, ainda mal refeito da partida pregada pelo Rocinante, quando reparo que na estrada passava, circunstancialmente, um mini-bus vazio, ostentando a enigmática frase “Use e Abuse”. Tomei a coisa como uma coincidência. Há coincidências do catano.
“É pá, infelizmente não te posso emprestar o carro. Vou às pinhocas a Pedreanes com a Isilda e depois sigo p’rá Vieira. O meu pessoal está de férias e a minha nora ligou a convidar para lá ir-mos comer umas sarguetas que o Sérgio tirou hoje de madrugada. Mas se quiseres posso-te emprestar a Casal de duas”. Foi desta forma que Zé Silvestre correspondeu solícito ao meu enrascanso e que parti ligeiro, já com os ponteiros para lá do aprazado, com destino à Rua Sociedade de Beneficiência e Recreio 1º de Janeiro.
D. Amália aguardava-me impaciente no patim, envergando farpela domingueira impecavelmente engomada. “Táva a ver que não vinhas”. As generosas camadas de pó de arroz e o cabelo penteado em forma de abajour, num claro desafio às leis da gravidade, denunciavam as expectativas que a octogenária punha nestas saídas com o seu único sobrinho a quem carinhosamente apelidava de “o meu preferido”. Quando olhei para a bengala e para a saia travada senti um arrepio na espinha - como é que raio vou fazer subir titia para a motoreta? Não havendo grua por perto, recorri a seis milagrosos tijolos dispostos em forma de escada. Por entre gemidos e um rosário infindável de “ai Jesus” lá consegui empoleirar D. Amália no motociclo que de imediato arreou. Quem também arreou foi o magnífico penteado de titia, o qual claudicou sob o peso do capacete integral que lhe coloquei na cabeça. “Mal empregados os nove eurios que paguei à Rosete da Pedra p’ra vir cá a casa toucar”, suspirou. “Paciência, a segurança está em primeiro! Um dia destes levo-a à Dinora”, argumentei eu tentando confortá-la.
D. Amália inteirou-me do itinerário cuidadosamente delineado na sua cabeça há já alguns dias: posto médico, para “medir a atenção” e dar dois dedos de conversa na sala de espera; loja das flores para comprar um ramo de “malmiqueres” para a campa de Alípio Saragoça, mestre lapidário; cemitério de Casal Galego para depor as flores e chorar uma Avé-Maria e um Pai Nosso por alma do finado; e por último “Comprativa do Povo” para adquirir um estendal em alumínio, “dos bons”. Fiquei sem fôlego e com o GPS a zunir. Não há-de ser nada. Confortou-me a ideia de saber que a pobre senhora sem a minha ajuda não iria nem tão pouco à sede da Ordem.
Evidenciando manifesto excesso de carga, o motor prestes a entrar em colapso e os pneus a suplicarem por oxigénio, lá arrancámos nós para cumprir o road-book, já passava das oito e meia.
Tirando a espinhosa tarefa de fazer subir e descer titia da motoreta, as primeiras três etapas foram cumpridas com sucesso, sem percalços de maior e dentro da hora prevista. A Casal de duas é que não parecia conformada bufando e gemendo todo o tempo, o que não augurava nada de bom. E confirmou-se! Cumprida a quarta etapa e após a odisseia de arrumar D. Amália e estendal de alumínio no motociclo, volvidos trinta a quarenta metros, mesmo no cruzamento para a Chinha’s Clinic, vários estampidos seguidos de um monumental estrondo. Flatulência de titia, ocorreu-me. Mas de imediato afastei a ideia ao sentir a motoreta a desfalecer e ao ver sapatos e calças cobertos de óleo de motor, enquanto D. Amália soltava um urro de pânico acompanhado de semi-desmaio. Apenas me deu tempo de lhe deitar a mão. “Acalme-se tia que foi só a mota que espichou”, exclamei eu dominador, tentando em esforço simultaneamente equilibrá-la e colocar-lhe um comprimido debaixo da língua. Só então me apercebi da dimensão do drama: titia apresentava sintomas de pré-ataque cardíaco, a motoreta dava entrada directa no SAP do Rosas, do outro lado da rua, e o estendal de alumínio (“dos bons”), evidenciava sinais de maus-tratos e de negligência. Estava de novo a pé, aliás, estávamos! C’um raio!...
Recobrado o ânimo, mas com D. Amália ainda meio zonza, deitei contas à vida e avaliei a situação. Eis que novo flash me invade os neurónios em sobrecarga - se ao menos houvessem transportes públicos… Nem por acaso. Nesse preciso momento vejo surgir vindo do lado do Operário um mini-bus vazio ostentando a patética frase “Use e Abuse”. Tomei a coisa como uma afronta.
E agora o que é que vais fazer Relaxoterapeuta? Matutei, matutei e de súbito fez-se luz. Recordando o que uns dias antes lera sobre um avençado da junta, exclamei: “Titia, quem nos vai safar desta é o Sr. Chico!”. Dito e feito. Afinal D. Amália conhecia-o de pequenino e ao nosso pedido de transporte para o Camarnal o senhor respondeu prontamente pondo-nos à disposição o único veículo disponível no momento, uma bicicleta equipada com um suporte traseiro. Agradeci delicadamente e comprometi-me que ao devolvê-la limparia o pó do edifício da Cambra e removeria as teias de aranha que por lá pululam. Perfeito, pensei eu quase a desesperar mas sem dar parte de fraco – “a cavalo dado não se olha o dente”.
Com a ajuda do próprio Sr. Chico e de mais dois funcionários, ou avençados (p’ró caso não importa), acomodámos titia e respectivo estendal no suporte traseiro da ginga e lá voltámos a partir - eu já só queria chegar depressa ao Camarnal.
Rua D. Dinis abaixo, temendo que a malapata ainda nos acompanhasse, jurei à Sra. da Piedade que por ocasião das próximas festas lhe acenderia uma vela pelo pelouro dos transportes e carregaria com pundonor o Pálio, mais o Piriquito. Só que a Santa não estava para aí virada, vim eu a perceber depois.
Pedalando corajosamente transpus a Praça Stephens deserta e meti pela Infante Dom Henrique em direcção às Portas Verdes, sentido a corrente ranger a cada impulso de pernas. “Está-se a aguentar titia?” perguntei eu arfando. Titia já quase nem respondia, o incómodo da viagem toldara-lhe a fala, mas não a razão. “Ouve lá, quando é que resolvem isto do mercado?” questionou ela quando lhe passávamos ao lado. “Está calor” respondi eu chutando p’ra canto e descarregando na roda pedaleira os nervos que a pergunta me causara. Face ao ímpeto imprimido, a corrente balançou, vibrou, entrou em tensão incontida e quebrou, provocando uma pedalada em falso. O estendal perdeu o equilíbrio, a bicicleta entrou em descompensação, titia em perda de sentidos e eu bati com os tomates no quadro. Nova corrida nova desgraça. Enfim! Tirando as escoriações do tombo, podia ter sido bem pior não fora ter obrigado D. Amália a manter o capacete integral a quando do início do troço de bicicleta.
Bem, já faltava pouco mas na prática voltava tudo à estaca zero – se ao menos houvessem transportes públicos… a porra do flash disparara novamente dentro da minha cabeça. Que raiva! Mas há coisas que só visto e o improvável aconteceu. Vindo do lado da Portela surgiu um mini-bus vazio, ostentando a provocadora frase “Use e Abuse”. Tomei a coisa como uma ofensa.
O que me restava? A algazarra do acidente aglomerara em torno de nós um pequeno magote que incluía alguns pedreiros de uma obra contígua. Entre eles estava um rapaz que me conhecia, mas que eu não reconheci. Tratava-se de um sobrinho da Lurdes Rata, a minha mulher-a-dias, que se prontificou a emprestar-me um “veículo de transporte”. Agradeci e aguardei perto dos tapumes, enquanto umas senhoras amparavam titia. Passado uns segundos aparece-me o rapaz todo sorridente com um carro de mão. Não consegui reagir…
E foi assim, sem brilho nem glória, que percorri o troço final e que entrei esfalfado e dorido no patim da casa de tia Amália, empurrando o carrinho de mão - ora cá estamos! “Graças a Deus, filho!” respondeu titia de dentro do carro de mão, de capacete integral, descomposta e exausta. “Graças a Deus chegámos vivos!”





11 - É anopsia. Está confirmado!


24/09/2007

Afinal confirma-se o pior dos diagnósticos, não se trata de estrabismo mas antes de anopsia, congénito portanto. Quem mo garantiu, pessoalmente, foi o próprio Dr. House após minuciosa análise ao comunicado bolsado pela assessoria de imprensa da nossa novel Câmara. E mais esculcou: “não tenham ilusões quanto ao futuro, situações destas normalmente degeneram na falência completa do sentido de orientação”. E a cura doutor? “Lamento, apenas paliativos, misericórdia e pauzinhos de incenso, a ciência ainda não consegue o impossível, dar dois dedos de iluminura a testas tão curtas é tarefa por ora impossível.”
A sensação que tive ao ler o funesto documento foi de receio, temi que de forma descuidada tivessem ingerido quantidades consideráveis de cogumelos alucinogénios e de seguida ainda tentassem saltar do varandim dos Paços do Concelho, convencidos que haviam incorporado o espírito de Ícaro, tal foi a vibração de delírio que o escrito me transmitiu.
Mas factos são factos e a verdade é que, embora me sinta inclinado a amercear a desbocada tese expendida em defesa do regedor e seus asseclas, pela falta de tacto e de sensibilidade que demonstram quando perdem a face, não me deixa a consciência que fique afático.
Num momento como este em que o desvario e a insensatez podem provocar perdas graves e irreparáveis ao erário e à credibilidade e bom nome da civitate, é bom lembrar ao Sr. Presidente que a seriedade que tantos lhe concedem pode ter sido irremediavelmente posta em causa pela forma bisonha como a coisa tem sido gerida. É bom lembrar ao Sr. Presidente que não deve tratar como azémolas os seus concidadãos sugerindo que “a Câmara Municipal, na pessoa do seu Presidente”, foi apanhada com as calças na mão, num momento de... distracção. É bom lembrar ao Sr. Presidente que a apetência e avidez que proclama pela legalidade deve ser geral e abstracta, tal como o é a lei, não lhe podendo dar o fastio e a ceguidade quando as normas não lhe aprazem. É bom lembrar ao Sr. Presidente que a saúde e o bem estar dos seus munícipes está muito acima dos interesses dos “pequenos comerciantes” que recebe condoído e com mesuras no Salão Nobre, bufarinheiros despreocupados com as condições de asseio e catástase com que mercam os produtos da sua lavra, ou não, desde que no fim da campanha as caixas de fruta oriundas do país vizinho e os cabazes de peixe engordado a farinha estejam vazios e a aljava cheia. É bom lembrar ao Sr. Presidente que a sua preocupação com as boas contas não se deve evaporar subitamente em decisões sem parcimónia, sobretudo quando as alternativas são óbvias, racionais, evidentes, de alcance pueril, mesmo que a memória não lhe faculte o destinatário final da factura contraída com o desmando - o cliente habitual, o de sempre! É bom lembrar ao Sr. Presidente que a fé cega que pôs nos peritos que lhe fizeram o relatório do mercado novo, corroborando as teses expendidas pelo seu versado vereador, deverá ser aplicada, na mesma proporção, aos peritos que agora fecharam o barreleiro mafuá e que tão somente lhe recordaram o que diz estar consciente – “que o Mercado não reúne as melhores condições de salubridade” - o velho, claro está. E sobretudo é bom lembrar ao Sr. Presidente que como figura primeira da administração municipal tem o injuntivo dever e o compromisso de respeitar pessoas, instituições e suas decisões, reconhecido e consagrado que lhe está o direito à indignação e ao recurso a instância arbitrais. É que quando se teima em coleccionar atitudes arrogantes e persecutórias em vez de amealhar crédito de consideração e coerência, mais cedo ou mais tarde o respeito e a autoridade são desafiadas. É dos livros, é da vida.
Mas este episódio que habilmente se tenta reverter a favor do actual executivo, pela reputada e oleada máquina de propaganda do partido da esquerda - sim porque o da direita ainda está para perceber como é que há-de chamar à razão o seu indócil e caracterial representante - teve o condão de mostrar preto no branco que o governo liderado pelo Presidente João e pelo Vereador Artur, é talhado para os grandes momentos, para as crises agudas. Repare-se como um executivo que não consegue exigir a um fornecedor de serviços, contratualmente vinculado, que mantenha operacionais os semáforos da cidade em tempo de veraneio, consegue a epopeia bíblica de, em apenas três dias, erigir um chandeu de barraquins a que deu o nome de “situação transitória”.
Mas teve mais, teve o condão de evidenciar a falta de vocação de um delegado incapaz de perceber que a sua autoridade pouco importa, se critérios de competência e de cordura não enformarem a actuação que é seu dever exercer de modo competente em nome do Estado e em defesa da saúde pública. Teve o condão de mostrar que o desnorte não se fica pela díade dos mais grisalhos, outras barbas supostamente mais arejadas também ajudaram à festa, transmitindo sem grande entusiasmo nem convicção, argumentos soprados por quem manda. Teve o condão de mostrar que a maior qualidade de um político é antecipar o futuro e não reagir aos acontecimentos que os submergem. Por isso Sr. Presidente, nunca mais volte a repetir que foi apanhado de surpresa, é um erro político grave e um desleixo irremissível, porque pior do que gente incompetente são políticos distraídos, quando se tem da causa pública um ideal de espírito de missão.

Pela mão da Lurdes Rata, a minha mulher a dias que na sexta de manhã cruzou a Praça Stephens transformada em Feira da Ladra, chegou ao meu conhecimento um panfleto do partido da esquerda. Dei de imediato instruções à Lurdes para limpar sem demora aquele vómito que deixara inadvertidamente em cima da mesa da cozinha e para deixar abertas as janelas afim de repor o ar fresco e puro na divisão contaminada. Sim, porque no Casal da Formiga ainda se respira ar fresco e puro.





12 –  Difícil ser humano


12/10/2007

De súbito, todos foram tocados pela compaixão e por um piedoso complexo de acatamento apenas contrariado pelo equilíbrio induzido pela Lei da Compensação de Sentimentos, mecanismo do subconsciente humano que controla a angústia provocada pelas fraquezas da incoerência e que se encarrega de manter a consciência tranquila e o corpo a salvo da insónia, por um fremir, uma raiva contida que impele como um imperativo de consciência, que se descubram e castiguem os culpados pela sina de João.
Subitamente as divergências insanáveis e a antinomia passaram para segundo plano, assumindo o respeito pela pessoa na sua dimensão mais humana o lugar central na discussão. O respeito, identificado que foi como denominador comum dos discursos, acabou por atingir uma dimensão quase dramática porque exponenciada pela variável tempo. Reconheçamos que, apesar do pudor e dos escrúpulos que nos levam sempre a evitar o tema, setenta e três anos não são setenta e três dias, e todos nós, mais velhos ou mais novos, projectamos sobre a pessoa de João o respeito que ansiamos ser merecedores - hoje, um dia, sempre. Mais a mais quando a memória, esse pequeno tesouro que José Cardoso Pires elegeu como a nossa mais preciosa referência, acumulou a riqueza dos anos.
Mas este caso não sendo singular é paradigmático da nossa própria crueldade e das nossas insuficiências, porque João é também, e porventura antes de tudo, uma vítima de si próprio. É que a maioria das vezes somos nós os nossos próprios algozes quando não delimitamos com rigor e critério as fronteiras dos compromissos que assumimos, e quando nos demitimos reiteradamente das nossas obrigações.
Sei que não é fácil, também eu me sinto confuso e tomado pela paralisante inquietação da dúvida, também eu não queria que tivesse sido assim, preferia ter visto João (e o seu partido) ser censurado politicamente nas urnas, cilindrado pelo voto do descontentamento popular em resultado da inércia, da atonia demonstrada.
Mas é importante não esquecer algumas coisas. Em primeiro, que toda esta trama de sincera condescendência, complacência e respeito é formulada num cenário que decorre do epílogo esperado, que por fim João acabará por renunciar. Em segundo, que se a preocupação fundamental de João fosse a sua cidade, deveria ter renunciado no preciso momento em que tal lhe foi “sugerido”, não arrastando penosamente a decisão por prescrição médica. E em terceiro, que João continua quedo e mudo, o que só vem adensar o clima de desconfiança e dar razão a quem se sente traído.
Então e se de repente João decide não abdicar do seu direito de governar, que a lei lhe concede e para o qual foi mandatado? Tragédia! O seu partido que tão salvíficas laudes lhe tem cantado, ter-se-ía de penitenciar com vergastadas e jejuns. Ou então, por entre olhares cúmplices e juras de amor eterno, diria que a culpa foi dos do costume e faria um acordo em regime de comunhão de adquiridos: segundas, quartas e sextas governa o João, terças, quintas e sábados governa o Alberto, encerrando ao domingo para descanso do pessoal.
Eu sei que estou a ser cruel e que isto até estava a tomar uma dimensão estranhamente freudiana, mas depois do que tenho visto nas últimas semanas, tudo é possível.







13 –  A ética e a estética


30/10/2007

Advertência: o texto que se segue pode conter linguagem susceptível de ferir a sensibilidade dos leitores. Eu avisei.

Desconsiderando toda a carga marialva que a afirmação pode encerrar, quer-se da mulher que reúna nos seus predicados e atributos, as qualidades e virtudes da estética e da ética, sublime estado em que a sua condição é elevada à de companheira ideal, mulher fatal, descartando a funcionalidade meramente mecânica dum palminho de cara sem maneiras nem princípios, ou o destempero desregulador eréctil duma mente brilhante numa figurinha de canhonaço ou de abóbora menina. E olhem que falo disto com propriedade. Com a propriedade de quem sobrevalorizou a elegância e a volúpia de gata gulosa da jovem Cintinha, desvalorizando o facto de no manual de instruções indicar expressamente que apenas vinha equipada com dois neurónios, tendo um deles fundido logo após expirada a garantia. “Machista!” – dirão alguns. Enganado pela sobreposição semi-consciente do falo ao intelecto, direi eu, invocando Édipo.
Também na política os atributos se equivalem, estética e ética são as duas faces da gloriosa alma dum político desejado, as duas premissas que o transformam num cidadão com carisma, aglutinador, prestigioso. A questão é que não é fácil encontrar o dois-em-um. Não que não existam, antes não exercem. Ou por outra, escolhem a ocasião – hoje vinga a ética, amanhã convém a estética – uma espécie de figura de alterne que degrada a imagem do comum político, ridicularizando a sua acção aos olhos dos seus concidadãos.
Nunca como hoje esta questão foi tão marcante, vincadamente marcante, diria. Na crise melodramática que a nossa púbere cidade enfrenta, fervilham as hormonas e os pelos próprios das idades de crescimento e de afirmação, das idades em que o acne revela mais do que nunca as fragilidades da estética sem ética e vice-versa, com múltiplos sintomas da disfunção e da qual os recém hiper-valorizados “independentes” são um dos mais eloquentes exemplos. Convenhamos que, na dimensão em que se tem colocado a questão, “independente” mais do que uma questão ética é uma questão estética. Pois que lhe serve a inexistência de vínculo partidário se não se fundar em profundas convicções e princípios ideológicos? A relevância da questão da independência não se mede no estrito âmbito da opção partidária, ela vai tremendamente mais fundo. Resulta da posição incompatível da defesa de múltiplos interesses corporativos em claro conflito, de que o exemplo mais ilustrativo é o da famigerada “promiscuidade entre o desporto e a política”.
Contudo, atendendo à efervescência do momento, não posso terminar sem afirmar que, não sendo por ora possível juntar ética e estética sob o mesmo chapéu da democracia, prefiro a ética do João à estética do Alberto. A menos que um destes dias o João acorde estremunhado e, sem se olhar ao espelho, decida num repente também trocar a ética pela estética, entregando ao Alberto, para glória e exaltação do aparelho, o estojo dos cosméticos com que este se vai entreter a maquilhar (n)os próximos dois anos.





14 –  Natal dos tristes


15/12/2007

Quase de abalada rumo ao Alentejo profundo, onde me esperam frituras de Natal com canela e mel de rosmaninho, aguardentes de medronho e um aconchegante lume de sobro para vencer o rigor do acentuado arrefecimento nocturno da planície, rebusco nas últimas novas do ominoso (des)governo da urbe, algum sossego para a viagem.
Os tempos têm sido de turbulência - truculência até - e eu não partiria ao encontro do messiânico Menino e de mais um novo ano de calendário sem um lampejo de esperança, sem um fôlego que me devolva a confiança nas virtudes da nossa jovem demokratía, cujos fino perfume e suave aroma, delidos num saturado fedor pútrido de rasteirinhos interesses, mesquinhas disputas ou calculismos menores, nos vemos tantas vezes privados de respirar. Raimundo Murraça, um querido parente que amargou a tortura do sono e da estátua às mãos dos verdugos de Salazar & Caetano, esses inolvidáveis portugueses de carreira, disse-me um dia, quase às portas da morte, palavras fundamente sofridas que jamais esquecerei: “Lembra-te Relaxita, a democracia é uma delicada flor que tem de ser acarinhada. Desconfia sempre dos que a oferecem por vaidade pois que se da terra a arrancam para a dar com soberba, é porque não querem que floresça todas as Primaveras. Os sacrifícios não contam para lhe manter o viço. Agora vai que estou cansado.”
Mas voltando às novas da enleada trama, a Oeste nada de novo. Confesso, com indisfarçável cinismo e ironia, que ainda tive alguma esperança, quando o ilustre bancário abdicou (com clausula de salvaguarda, é certo) e o professor sucessor fez publicar o armistício, secundado pela gazeta do trombeteiro das causas justas e da defesa dos interesses das populações, que anunciava o regresso da paz à terra e o fim das hostilidades entre germanos - “salve, aleluia, salve”. Puro engano, meus caros, puro engano.
Ainda o morto não tinha arrefecido e já o professor, vestindo a toga de juiz zarolho, punia os tíbios e inconsequentes delatores, ímpias forças de bloqueio ao avanço imparável da cidade adormecida, e elegia num passe de mágica barata (um-dó-li-tá), com juras de amor e reconhecimento perpétuo, “o eleito”! Reatava assim o novo alcaide, a velha aliança com o social democrata anoso, a aliança velha, por encertar num virtual jantar de homenagem ao mártir da renovação, agora bebida sofregamente em tragos insípidos de populismo demagógico, obtuso, enquanto o partido do dito mucama deitava mãos à cabeça sem perceber como segurar na forma o insubordinado publícola, transformado (uma vez mais) no sustentáculo da governabilidade responsável, no pilar da maioria estável. “Ó tudo ou nada!” gritaram os juvenis, enquanto pintavam rugas, a traço grosso de lápis de carvão, na testa e na curvatura dos olhos. “Ou ele ou nós!” - é já um murro na mesa, uma punhada veemente! Não contavam os destemidos e abnegados guerreiros é que a mesa fosse tão dura como a cabeça do desalinhado. É claro que sem acautelarem o imprescindível aquecimento a que os atletas de alta competição se devem sujeitar antes de qualquer peleja e a mais, entrando a matar logo no primeiro round, o resultado não fosse outro senão o previsível: punhos partidos e dolorosos hematomas nos cotovelos, sem que o velho tampo de aglomerado barato vacilasse sequer. Felizmente havia por perto quem dominasse a arte do rápido restabelecimento dos ossos, dos tendões, dos tecidos e das massas musculares, a emplastros balsâmicos e massagens tonificantes - será que são recuperáveis para o segundo assalto, lá para meados de Janeiro? – pergunta-se.
Mas como se não chegasse, para agitar ainda mais as águas barrentas e para levar à exasperação os mais fleumáticos, eis que o melindrado ex-regedor, ressabiado qb, decidiu pôr a boca no trombone e dar à estampa e ao éter a sua visão da abrilada. E a vontade com que o fez foi tanta que à ganância de soprar violentamente no instrumento, os peitos inflaram acima da capacidade instalada, os abdominais flácidos e destreinados cederam à pressão e o que se ouviu não foi um original e poderoso “acorde” erudito mas tão apenas um chocho ré menor da campana do instrumento e um sonoro e abjecto sol maior do extremo do intestino. Um peido inócuo, uma genuína Opera Buffa para recriação do povo taciturno.
O certo é que, dado o histórico do indivíduo, na verdade não haveria muito a esperar. No entanto restava a justa expectativa de ouvir na primeira pessoa do singular, pelo menos, o descargo. Mas nem isso. A fraqueza dos argumentos foi tamanha que só sobraram lugares comuns e estórias de infiltrados e de outras carochinhas. A vingança parece constar destacada no seu cardápio e o ex-qualquer-coisa fez a vontade ao palato, não se coibindo de apontar o canhoeira a três ou quatro suspeitos, mas apenas alvejando, com requintes de preconceituoso, o que estava mais à mão, o mais tenrinho. Quer-me crer que virou-se o feitiço contra o feiticeiro e a suspeição lançada sobre os canalhas sem moral nem preparação política, cai agora sobre as suas próprias insinuações não concretizadas, censurando-se a forma pouco edificante como adjectivou o camarada mancebo, como se a juventude fosse uma deformidade, o sotaque madeirense um estigma e o brinco na orelha um ferrete do demónio. Com as raposas velhas não se meteu ele. Porque será? Só encontro, das duas uma, ou porque de facto elas são produto da sua quimera, ou porque tão somente foram o velhaco truque para inocentar e cantar salmos ao inocêncio partido que o despejou borda fora, colhendo a absolvição do colectivo e do líder enganado, induzido em erro por camaradas sem escrúpulos e sem capacidade de análise política. Mas tiremos o chapéu ao partido. O partido não perdeu a compostura e reagiu calado e sereno, misericordioso, compassivo. Estranho não é?!
Enfim. Rebuscadas que foram as últimas novas do ominoso (des)governo da urbe, não encontro sossego algum para a viagem. Nada que me faça crer que o oprobrioso enleio não está para durar. Resta-me a consolação de ter encontrada (finalmente!) a samarra com pelo de raposa que comprei uma ocasião em Portel. Já estava a desesperar. Afinal estava no velho guarda-fatos do quarto das visitas. Tenho de admitir, esta casa sem uma mulher nunca mais foi a mesma. Deixá-lo…
O fardel está quase pronto. Arrumo por último a Agenda Cultural com a mensagem de Natal do Professor Presidente no bornal de estoupa, uma mensagem para debulhar na noite da missadura à luz dum candeeiro a petróleo, e digo para os meus botões e para o fecho da minha braguilha - o melhor é mesmo ir andando, tenho um filé que além do Tejo a coisa vai correr bem melhor do que aqui. Que a graça me toque. A divina, claro está.

15 –  O regresso do desejado


13/02/2008

Estava-se por alturas do centenário do regicídio, nem a despropósito, quando o magnânimo epistológrafo desibernou do recato auto-infligido, táctico, para dar esplendor, brilho e cor à desluzida gazeta das verdades incontidas, ao periódico que marca os tempos urbanos da abundância e do pousio intelectual, equipado com estatuto cadimo, cuidadosamente esboçado em papiro coçado, vocacionado que foi por despacho e ajuste directo para acolher os mais nobres desígnios da informação do burgo, paradigma dos media take-away - “escreva, nós publicamos”. Nunca subestimando camaradas, nunca subestimando! Quem já “mandou abaixo” um alcaide de má memória, pode muito bem rescrever a história, pode muito bem surpreender os negligentes napeiros com um qualquer número artístico, com um passe de mágica fabuloso, subtraindo a uma vulgar cartola de amolador de tesouras um coelhinho catita, já guisado de preferência, ou então uma pomba branca, da paz, ligeiramente alimada e estufada a vapores de conhaque. A mensagem é clara e concisa: o tempo é de reconciliação e de desarrufo. Rei morto, rei posto.
Mas a reentre foi feita com modos, conduzida por mordomo entronizado, peneirada em tira de editorial laudatório a atravessar o tempo e o espaço, revelando a verdadeira identidade salvífica do desejado o qual, apesar de ausente, na verdade nunca o esteve, pois a sua magna opinião permaneceu sempre ali, implícita no espírito da gazeta, impregnada na textura do papel-jornal, entranhada nos elementos químicos da tinta da rotativa. Talvez por isso nunca nos tenhamos sentido órfãos, que para isso já bastou o da pesada herança...
Mas caros amigos, o que vos posso afiançar é que o intróito foi de tal forma punjente, penetrante e apelativo que comecei a sentir as glândolas salivares a entrarem em ebulição enquanto se apoderava de mim um voraz e incontido apetite de voltar a ler o mestre das frases de cortar a respiração. Contas feitas, as saudades já eram muitas. Muitas mesmos. Maiores do que o arco do tempo que o subtil silêncio durou, o curto reinado do jubilado Meio-Mandato.
E foi assim, de guardanapo entalado no colarinho e talheres de casquinha, convenientemente aparelhado para a exigente exegese, que ataquei de forma generosa e de peito aberto o texto do regresso, servido após a guarnição em apenas quarto de página. Na esperança de saciar a galga, de beber nas palavras acertivas o sentido dum novo rumo, na esperança de me lambuzar com arquétipos gizados com visão, ricos em hidratos de carbono, vitaminas, proteínas e sais minerais, atirei-me ao dito como gato a bofe.
Desilusão... d-e-s-i-l-u-s-ã-o… “não foi nada disto que pedi”, atirei com aziúme ao chefe de mesa.
Ao invés do esperado, apenas a insipiência da quadratura do círculo, o mesmo discurso de sempre, sectário, empedernido, moralista, redondinho, o discurso do “nós é que interpretamos a verdadeira essência da democracia”, do “nós é sabemos evocar os heróis e os mártires da liberdade”, do “nós é que representamos verdadeiramente as legítimas aspirações do povo”. A descuidada confecção e a falta de mão para os temperos, deitaram tudo a perder. A banha e o sal em demasia fizeram logo disparar a minha volátil tensão arterial, frustrando por completo as justificadas esperanças depositadas na lauda refeição prometida pelo chefe de mesa que me desvendou e aconselhou os segredos do cardápio. E eu a pensar que o desejado ia analisar as causas duma primeira parte de mandato medíocre, que ia discorrer sobre os projectos e as prioridades para a segunda parte, que ia insuflar um sopro de confiança na nova equipa, um sopro de esperança em nós cidadãos, nos agentes culturais, associativos, económicos, que ia enunciar as principais directrizes duma política cultural consequente, duma política para a juventude coerente, duma política associativa racional, duma política para a terceira idade generosa, que ia explicar a identidade estratégica entre os partidos do poder, que ia explicar duma vez por todas como é que conseguem coabitar com um parceiro que cada vez mais se representa apenas e tão só a si próprio, ignorando o partido que o fez eleger e reclamando para o seu próprio partido um desígnio colectivo, muito acima de pessoas e nomes. Em que ficamos camaradas?
Começo a ficar farto de tanta falta clarividência, de sentido crítico, de sentido de Estado, de ausência de razão. Para mim, basta.
Antes que as forças me faltem e a moral me murche, acho que vou encabeçar um movimento de cisma, de autodeterminação. É chegada a hora de dar um murro na mesa: Casal da Formiga a Concelho! Já!






16 –  Semiótica


08/03/2008

O Mestre abeirou-se de mim e entre dentes ciciou – Sabes, vou fazer um filme sobre a tua terra.
Buélo, ante a imprevista revelação, questionei-o curioso – Um documentário? Sobre o vidro? A indústria?
Sorriu, afagou o queixo e num tom de assentimento satisfez-me o almejo – Não, sobre a cidade. Gosto de planos longos e lentos, quase dormentes.
- Mas os actores… o guião… não são grande coisa – avisei.
- Não importa, o que me interessa é a fotografia, a imutabilidade da imagem. Como se o tempo não fosse factor de absolutamente nada. Imagina um rio que não corre para lado nenhum, ao ritmo dum relógio sem ponteiros, marcado por um calendário sem dias.
O Mestre não me surpreendia, antes confirmava os meus piores receios que iam muito para além da sua visão erudita e iconoclasta.
- E já tem título?
Cerrou os olhos e, levantando a mão num suave movimento da esquerda para a direita, como se de escrita se tratasse, foi deixando suspenso no ar, entre o indicador e o polegar ligeiramente afastados na vertical, o epigrafo escolhido - “Marinha Quieta”. Gostas?
- Não.






17 –  Manifesto Anti-Cunha


03/04/08

“Basta PUM Basta!!!”

Basta de picadas de melgas e mosquitos, basta! Morte à Cunha e morte a todos quantos a bajulam, a adornam, a todos quantos lhe alimentam uma existência perversa e dissimulada! Que morra a Cunha, que morra! PIM! Porque um país que vê ingénito nos olhos da menina Cunha, transparência, candura, inocência, é um país da treta, uma choldra, um punhado de feltreiros e palanfrórios que apenas têm o que merecem: um país deslambido, uma nação agarrada ao fadinho da fatalidade, da fatalidade de ter nascido no dia em que o filho deu uma aquecedela na mãe, um país de espertinhos, de chico-espertinhos “a mim não me comem não!...” Não te comem? Só se não calhar, sonso, ó pensas que a menina Cunha não é uma saloia atrevida? “Alto aí que eu não sou desses!” Desengana-te néscio, já todos piscaram o olho à bisca, já todos lhe miraram o cú e as mamas sem que ela tenha sequer corado de acanhamento. A menina Cunha é uma rameira, a menina Cunha é uma oferecida, a menina Cunha é uma meretriz. Enquanto se arrefenha com gajos como tu, coça o nariz e come tremoços e pevides, indiferente, incônscia, puta dos pés à cabeça e da cabeça aos pés, puta todos os dias, a qualquer hora, em qualquer lugar. E olha que a gaja está em todo lado, c’uma porra! É nas empresas, é nas associações, é nos clubes, é nos hospitais, é nas repartições, é nos partidos, é nas câmaras, é no parlamento, é no governo... c’uma porra! Vai com todos, porra! Com todos, ouviste?
“Olá!...” T’ás a pensar: “mas quem é este gajo p’ra falar assim de tão inocente e prendada menina?” T’ás a pensar... mas tu lá pensas, carago? Tu lá tens escrúpulo de dares uma facadinha com a gaja só para internares a sogra, para ela ser operada à frente dos outros vinte mil que estão em lista de espera? Tu lá tens escrúpulo de dares uma facadinha com a gaja para veres aprovada a licença de construção da marquise? Tu lá tens escrúpulo que o teu filho passe à frente de cem garotos para entrar no infantário que escolheste? Tu lá tens escrúpulo de passares à frente de duzentos tipos mais qualificados do que tu, para aquele emprego que sabias impossível? Tu lá pensas nisso? Tu queres é chegar a casa e teres a janta na mesa. Tu queres é ver a bola no sofá, queres pular p’ra cima da patroa (como carinhosamente a tratas) sempre que te apetecer. Tu queres é que os outros decidam por ti e sabes porquê? Porque estás confiante, porque crês que a menina Cunha está à tua espera de perna aberta e que te vai safar, que te vai abrir as portas do empregozinho, do cargozinho, da consultazinha, do subsídiozinho, do lugarzinho no céu. E sabes porquê, chibante? Porque não acreditas no mérito, no esforço, no valor do trabalho. Enxovalhas a garota que arrancou o telemóvel das mãos da professora de francês, gritando e exigindo respeito pelos valores, pelo antigamente, mas sempre que podes dás uma trancadinha na puta, na cândida e prestimosa menina Cunha. Chafurdas na lama convencido que és impoluto.
Basta de picadas de melgas e mosquitos, basta! Que morra a Cunha, que morra! PUM! Porque caso não saibas ou a memória te falte, PIM, sabes de quem é filha a dita menina, sabes? É filha duma velha que odeias mas que engordas a couve e farelo. É filha da velha Corrupção, essa mesma, ouviste bem. És tu, eu e outros cabrões como nós que lhe damos trabalho, que permitimos que faça o que melhor sabe, minar o Estado, fazer-nos não acreditar...

“Morra o Dantas, morra! PIM!” E mais a puta da menina Cunha! PUM!





18 –  Abram alas para o Noddy


01/05/2008

Abriu a caça à perdiz e a outras galiformes, sob o olhar complacente e incapaz das aves rabudas, mais preocupadas em não perder de vista os cucos que lhes querem subtrair os ninhos e os feitos que rendem petauro. Abandonemos a hermética e sibilina linguagem dos ornitólogos diplomados, só ao alcance dos papáveis de crista escarlate, e troquemos por miúdos a cifra. Comitentes, regedor e demais asseclas, o clube das sextas-à-noite, decidiram por unanimidade e aclamação descer às profundezas da urbe para uma operação de charme, para prestar contas, boas contas, sentir o pulsar do povo que em si confiou e de si desconfia. Vão distribuir em bardas doses, atenção, pluralismo e humildade democrática, dizem. Despem-se os jaquetões e as camisas maoistas, dão-se lugar às humildes calças de zuarte e ao estame cinza das camisas da boca do forno, para que o povo sinta o cheiro da sudação que emerge das decisões difíceis, do trabalho árduo dos que têm a espinhosa e molesta tarefa de arquitectar o nosso porvir, da vida dura e cruel dos gabinetes. Despojados de todos os símbolos e tiques aburguesados, apoiados num dissimulado e roufenho megafone, urdido por conveniência em folha de papel-jornal, partem em missão estrada fora percorrendo em comitiva de matineiros e por várias semanas, azinhagas e áleas, lugarejos e povoados, pedindo ao povo que soluce os seus lamentos em ombro amigo, pedindo ao povo compreensão para as dificuldades herdadas de outros órfãos. Vê dona Efigénia, finalmente alguém que lhe presta atenção, alguém que a ouve e que lhe vai tapar o buraco, desentupir a sarjeta, colocar o contentor dez metros mais para a esquerda, calcetar o meio-metro que falta do portão até ao passeio, alguém que a compreende, que vai tomar boa nota e em devida conta todos os seus problemas. Pois que gerir um município também é isto, D. Efigénia, à pois é! Mas, e o resto? Os planos quinqui-catrapinqui-anuais? Os big-mega-projectos? A complicada planificação urbana? Os transportes? As germinações? O relacionamento estratégico com os povos irmãos da revolução? Felizmente que há alguém que não vai à rambóia e que fica para arrumar a casa.
Dividindo um dia de labor esgotante entre o pó do gabinete e o pó da rua, há um pilar da estabilidade, um visionário diligente que zela para que os herdeiros da sua resplandecente clarividência, concluam em obra o que imaginou legar ao futuro. Mas cautela Oliveira, cautela. Nem todos compreendem o valor e o alcance do teu meritório trabalho. Lá dizia o gazeteiro, trabalhar muito pode não ser sinónimo de trabalhar bem. Sinais…
Mas para quem como eu herdou da bisavó paterna inatos dotes de adivinhação, há mais sinais, sinais que não colhem logro e que desvendam o termo mais que próximo do teu prestimoso contributo para a história da coligação. Sinais como aquela mise-en-scène em que o maioral da corporação dos fregueses levantou fervura de modo inopinado. Em que abespinhado, exasperado, na presença da Mendes Pinto do reino, vociferou contra a destruição do mítico e idílico Lavadouro do Olho, atirando-se a ti como gato a bofe, dando o mote para que o xerife apaziguador executasse com mestria mais um dos seus magníficos passes de mágica. E logo ali se gizou a intrincada resolução para o não menos intrincado problema: uma réplica à escala natural daquela obra-prima que Lopes Vieira apenas não exaltou por falta de tempo. Acho a ideia bonita e o sinal inequívoco, por isso: cautela Oliveira, cautela…


Aviso: se passarem ao Casal da Formiga, não ousem desafiar a minha paciência que vos solto o temível Tarzan, pois que apesar de rafeiro, tem alma de guerreiro e dente afiado. É que se me acabaram os calmantes e já estou pelos cabelos com choramingas a baterem-me à porta. Já bem bastam as testemunhas do Senhor, todos os sábados à tarde.





19 –  Luzes - Câmara - Acção!


18/06/2008

Empós quase dois terços (e algumas avé-marias) de mandato desfiado a jejuns e abstinências por esgotamento da capacidade de oberar, já que a pandilha cor de rosa tratou de secar os plafons, no culminar da barométrica auscultação angariada no porta-a-porta onde cerca de 9.000 almas (de acordo com os números oficiais) foram acarinhadas, compreendidas e a quem foram reveladas as grande linhas estratégicas, adiafa na sede Ordem com direito a anfiqri dos legítimos representantes da luta de classes, para prestar contas do… futuro. Sim só pode ser do futuro, já que o passado recente, assumidamente, tem sido de míngua, rigor e labuta, para endireitar o barco que os outros deixaram prestes a encalhar. Não fosse a pesada herança e já o navio rumaria a velocidade de cruzeiro em direcção ao porvir, locomovendo atrás de si o progresso e o bem-estar do povo trabalhador, ao som da Internacional. Não fosse o aperto do cinto imposto pelo pseudo-engenheiro e o contra-vapor da “oposição bota a baixo” dos seus serventuários da ex-capital vidreira, e o “programa ambicioso” que apresentaram em 2005 já estaria explanado por todo o território sede de concelho e ilhas adjacentes. Não fosse o “velho do Restelo” ter regateado o acordo ante-nupcial de reforma antecipada que levaria, na linha de sucessão natural, à entronização de novo monarca, de nova dinâmica e a um refrescamento da corte, e já a revolução estaria consolidada e o futuro garantido. Logo o decano comunista havia de cismar que lhe estavam a passar a perna e que nunca houvera qualquer pré-acordo, porque o casamento com o partido é indissolúvel e o compromisso com o povo é inalienável. Que chatice, só problemas…
E o balanço camaradas? De acordo com o porta-voz da organização o balanço é positivo “No fundo prestámos contas sobre a nossa política, da qual destaco como prioridade o saneamento básico e as acessibilidades”. Mau porra – fiquei baralhado. Será que me escapou alguma coisa nestes dois anos e picos? - e eu que pensava que a prioridade tinha sido desencalhar o navio...
Decidi por isso abandonar por horas o remanso do Casal da Formiga e dar uma volta pela cidade à procura de encontrar o fervilhar das máquinas esventrando a terra, colocando manilhas e colectores como uma rede de artérias, veias e capilares prontos a encaminhar para adequado tratamento, detritos, cocós e outros dejectos duma sociedade dita civilizada, procurando encontrar o frenético ruído das máquinas rasgando circulares de descongestionamento, fazendo o transito doutros destinos fluir, contornar a cidade sem lhe provocar desajustados aumentos da tensão arterial, procurando o bulício dos grandes empreendimentos estratégicos que operam as revoluções sustentáveis, procurando (simplesmente!) a marca d’água desta política cujo porta-voz, surpreendentemente agradado, declara para quem o quiser ouvir que as cerca 9.000 almas contempladas com o encontro imediato de 1º grau, se mostram satisfeitas com o trabalho desenvolvido.
Enquanto percorro a cidade, no velho auto-rádio que equipa a infatigável Ford Transit que me acompanha fielmente há mais de vinte e cinco anos na venda de candeeiros, por todo o país e arredores, e bem assim como noutras aventuras despudoradas onde os seus modestos amortecedores são testados até ao limite da resistência humana, duma cassete esquecida ecoa o som roufenho duma cançoneta doutros tempos “procuro e não te encontro…”, canta Toni de Matos com voz forte e sentida. Também eu continuo a percorrer a cidade à procura da razão de se ser poder e das apregoadas prioridades. E enquanto espero que uma alma caridosa me dê prioridade para entrar na avenida, no semáforo (há meses avariado) junto ao Cimarina, penso, o problema só pode ser meu, vou marcar com urgência uma consulta para o oftalmologista. É que já gastei mais de meio depósito e não vejo sinais de progresso, a cidade parece ter mergulhado numa profunda catáfora, parece incompreensivelmente adormecida. Talvez seja esse o segredo, concluo, é que enquanto se dorme todos os sonhos são possíveis. Até mesmo imaginar uma cidade que não existe.





20 –  O Velho, o Rapaz e o Burro


04/09/2008

Zás-trás-pás! Zás-trás-pás! Zás-trás-pás! Faça-se silêncio na sala, amordacem-se os galegos, expulsai da mesa os labregos, sem brasão e sem tostão. Escutai criaturas, escutai, duma velha alcoviteira, esta história verdadeira, uma história de pasmar que vos vai fazer… corar.
Era uma vez… nããã!
Certo dia… humm…
Há muito, muito tempo… mau porra… soa-me a José Cid!… Recomecemos:
Zás-trás-pás, pozinhos de pre-lim-pim-pim, mesuras e pilim, esta história de pasmar não tem tempo nem lugar.
Em uma aldeia perdida entre Vila Velha do Vapor e Degredo da Porca, havia um velho, havia um rapaz e havia um burro. Comecemos pelo afalado jumento, que era o único da sua espécie na aldeia. De quatro patas, bem entendido.
O dito asinino, que já não era tenro e que já passara pelas mãos de diversos armentários, era o único meio de transporte do pequeno povoado e o alvo da cobiça de peraltas e abastados. É que mais do que os seus prestimosos serviços de pequeno, médio e longo curso, o burrico, equipado com faróis de nevoeiro, escape de alto rendimento e uma placa pendurada ao pescoço onde se podia ler “Serviço Ocasional”, era usado e abusado como veículo de ascendimento, para passear presunção e água-benta, pesporrência e soberba. Homem bom que se cuidasse, havia de passear-se pela aldeia no corcovo do bicho, todos os anos, entre o Domingo Gordo e o Dia de Todos os Santos, pelo menos três ou quatro vezes, enfarpelado em brochura domingueira e a tresandar a lavanda. Era o mínimo. Não que a tarefa fosse canja de miúdos, custava uma fortuna e alguns golpes de rins, mas como não havia outro modo, o melhor mesmo era perder o amor a três afonsins e deixar para as calendas os princípios distintivos dum novel e ilustre cavalheiro, que Deus os haja.
Quanto ao rapaz… bem, quanto ao rapaz, era simplesmente o dono do burro. No essencial era isso, o grumete era o dono do burro. Não se lhe conhecia condão nem predicado, o seu talento resumia-se a ser o dono do burro - um golpe de finura: um burro sério, de idade respeitável, arrematado em vésperas da restante comunidade asinina ter sido dizimada por um funesto surto de diarreia.
Já do velho, dizia-se, que era rijo, probo e imprevisível, às vezes finório. Havia sido contador de sua senhoria reverendíssima o Arcipreste Cilício, até ao dia em que foi chamado, contra a vontade de uns e a manha dissimulada de outros, a prover bom augúrio para o celeiro do burgo. Logo contas deitou à vida e com artes de avisado espíscopo entesourou cereal para quatro invernos, upa, upa, à míngua do povo que passava privações e miséria, de barriga e de alma.
Os tempos eram de indigência e até as viagens fautorias do burrico se ressentiam da conjuntura, levando o rapaz, que contava com o ovo no cú da franga, a exasperar para juntar folhelho que compusesse o estômago do escanzelado. Tá visto que lhe entravam nas contas as viagens promocionais do velho celeireiro mais umas quantas, bem medidas, idas e voltas de aprovisionamento.
Só que o velho, que não alimentava a mais pequena dilecção pelo rapaz e pelo burro, estima que era reciprocamente devolvida pelos visados, decidiu, contra as legítimas aspirações económicas e bairristas do rapaz, recorrer a azémola de aldeia vizinha, para compor a logística e para dar um ar de sua graça. Olha o que o velho foi fazer! O rapaz, melindrado com a desfeita, começou a enxerir à má-língua o desmiolado, treinando o burrico horas a fio a dar coices numa silhueta que replicava o velho, apurando-lhe o sentido para que o jerico lhe deferisse com os cacos um golpe demolidor, quando ambos na rua se cruzassem.
E tantas vezes o cântaro foi à fonte que, as gentes da aldeia que haviam levado o velho a supremo feitor do celeiro foram as mesmas que lhe indicaram a porta dos fundos e lhe entregaram guia de marcha compulsória. O rapaz, ufano, vangloriou-se e logo predispôs os préstimos do burro para honra e glória do povoado e da nova capelania. Olha o que o rapaz foi fazer. O velho, ressabiado, mandou espalhar bicadas e calduços, no rapaz e no burro, exigindo que fossem reparadas as ofensas despendidas. A esta nova investida, aos olhos do moço, impropérios, aos olhos do ansião, a defesa da honra, veio o burro zurrar clemente punição divina, que dos homens custa uma fortuna e demora uma eternidade.
A tudo isto os mais comuns do povoado assistiam com ingénua indiferença e os mais altivos com paciência ardilosa, tolerando as piruetas do burro e dando anuência e palmadinhas nas costas às tiradas do imberbe. Ao decrépito, por piedade, tudo era descontado e assentado no rol da mercearia, que as contas ficam lá mais para diante.

Moral da história:

“não vejas no melro um pavão, nem uma libra num botão”


21 – O Bursaphelenchus Xylophilus

Marinha Grande, 13 de Outubro de 2008

A coisa é grave! O bursaphelenchus xylophilus, de baptismo, mais conhecido entre a súcia pelo nemátodo do pinheiro, até agora confinado a algumas regiões a sul do rio grande, está inapelavelmente a dirigir-se para norte. “Que se cuide o Pinhal do Rei”, parece gritar por entre estridentes gargalhadas guturais o longicórnio do pinheiro, insecto vector que transporta na sua traqueia, imagine-se, o microscópico facínora que nutre especial devoção e apetite pelo pinheiro bravo. “Agulhas amareladas e murchas, começando pelas mais jovens, que ficam na árvore por longos períodos de tempo”, “árvores com a copa total ou parcialmente morta”, “murchidão generalizada e súbita”, eis alguns dos sintomas agonizantes, após infligido o letal ataque do bárbaro agressor.


Bastou que o mercado na Wall Street cedesse, para que o mercado na Feira dos Porcos vacilasse, fazendo jus ao dichote popularucho – até a barraca abana! - coisas da globalização. Mas se lá foi a ganância pelo argém que acendeu o rastilho, cá foi a ganância pela legalidade, das leis, essas estranhas e curiosas linhas que delimitam a acção e o modo, umas vezes mais esticadinhas e niveladas que um prumo, outras vezes mais flácidas e serpenteantes que uma jibóia perguiçosa, tudo dependendo do olho director do sicrano ou do beltrano que as mire, de vesgo soslaio ou com modos de mirante conhecedor. É conforme.
A verdade é que, após uns quantos meses a estagiar em cascos de carvalho francês nas bafientas sub-caves dos paços (ainda se está para perceber porquê…), foi servido a contra-gosto à oposição, um parecer de violação dos pormenores da zona de implante do barracame, com rótulo de agarranado e com indicação de proveniência - comissão de região demarcada de origem duvidosa. “Cá está!” exclamou a oposição, finalmente o elemento que faltava para completar o puzzle da infracção e fazer soltar o gás. Logo a madre de Calcultá encabeçou a rebelião e brandindo o documento-prova diante dos prestimosos servidores da comunicação de massas, sequiosos de sangue quentinho para uma cabidela avinagrada, reclamou em tom de cantilena pueril: “violaram, violaram, violaram! Bem-feita, bem-feita, bem-feita!”. Mas espera que não se ficaram sem resposta! Logo um arcediago sabido e um cacifeiro ofendido (este na dupla qualidade de vendedeiro e de utenteiro), a duas vozes, afinadinhos, saltaram em defesa da honra, devolvendo a cantilena monocórdica sob a forma de argumentação barata e bacoca: “vocês é que violaram, vocês é que violaram! Queixinhas, queixinhas, queixinhas!”.
Psschiuu!!! Então meninos? Compostura! Tino, porra! Mas por acaso vocês acham que nós estamos interessados em saber quem violou mais vezes a lei? Vocês acham que nós acreditamos nas vossas intenções quando nos dizem aquilo que vos convém em cada momento? Vocês acham que somos parvos, ou quê? Nós estamos interessados é que as leis se cumpram, e em primeiro lugar pelos que nos devem o exemplo. Nós estamos interessados é que subam, não o tom, mas o nível da discussão. Nós estamos interessados é que tenham e-s-t-r-a-t-é-g-i-a! Nós estamos interessados é que tenham i-d-e-i-a-s e as c-o-n-c-r-e-t-i-z-e-m, que sejam c-o-e-r-e-n-t-e-s! Será que é pedir muito? Vá lá meninos, tento na língua, olhem para o exemplo dos vossos colegas aí à direita, caladinhos, sossegadinhos, bem comportados, com umas asinhas brancas e uma auréola beatífica. E porquê? Porque fazem sempre os deveres e portam-se sempre bem. ENTENDIDO?


Cidadãos de Santa Maria da Marinha, a quem o ministro marquês um dia dispôs que se chamasse, para nossa honra e glória, Marinha Grande, anuncio-vos o óbvio: o bursaphelenchus xylophilus há muito que tomou conta dos pinheiros da nossa cidade, em particular daqueles em quem fomos confiando, seguros das suas fundas raízes, tronco firme, sombra generosa e seiva abundante. Afinal, estão murchos.



Há duas estratégias possíveis para combater este flagelo do nemátodo do pinheiro. A primeira estratégia, a que está em curso, resulta do estado de letargo geral e aponta para uma sépsia generalizada das diversas espécies de pinheiros, no pressuposto de que quando já não houver mais cuníferas para infectar o nemátodo se erradica a si próprio. É uma estratégia destrutiva e causadora de incalculáveis prejuízos.
A segunda estratégia, a mais difícil, resulta da vontande inconformista e de não resignação, apontando no sentido dum combate feroz e ingente ao longicórnio do pinheiro, o tal insecto vector que transporta o minúsculo macaréu. Este insecto de ambição desmedida, que pulula e parasita indiferente em torno das nossas florestas, é ele próprio também uma praga que urge fulminar, pois parecendo inofensivo e inócuo é o terrível e abominável hospedeiro que permite a disseminação desta abjecta doença, que mina a saúde e a alma dos nossos pinheiros.



22 – O Erro do Criador

Marinha Grande, 11 de Novembro de 2008

E ao sexto dia Deus criou o homem...

Mas mal o Criador se aprestava para voltar aos céus e aliviar fadiga de tão intensa jornada, sentindo passos atrás de si, virou-se. A correr em sua direcção vinha um desassisado camarista de farta cabeleira branca, acenando freneticamente com algo na mão direita, enquanto a esquerda se enterrava no bolso, como que impedindo que algo se escapasse. “Olhe, se faz favor. Queria entregar o cartão do partido. É que os juvenis já não me dão crédito e tomaram-me por aziago.” E logo Deus se amargou de arrependimento por ter concluído a criação.
Porém, para assombro do próprio Criador, um anjo êufono e titubeante que vagueava por perto sem GPS, tomou-lhe a mão e proclamou em tom grave: “Segue-me camarada, que enquanto a luta de classes precisar de ti, serás um dos nossos. Busquemos o norte magnético!”. Perturbado, o Criador rompeu num pranto inconsolável.

Depois de um Outubro generoso, solarengo, com o astro rei a bailar por entre os ramos semi nus das árvores de folha caduca, entraram pelas frinchas da janela esconsa da minha sala-de-estar os primeiros arrepios de frio, um gélido calafate soprado do grande glaciar em degelo, fazendo recordar aos homens que a natureza acusa sinais evidentes de cansaço, de maus tratos e de sobre-saturação. Pela primeira vez este ano, aconchego três cavacas de sobreiro do Redondo na lareira ainda fria do verão, e acendo o lume com caruma, pinhocas e pequenos gravetos de pinheiro, apanhados na recta de Pedreanes numa tarde de sábado por finais de Setembro. Este é um luxo a que me permito, não tanto por vaidade mas mais por necessidade - sentar-me em frente ao lume num final de tarde a que a mudança da hora já acrescentou noite, lâmpadas de baixo consumo apagadas, um cálice de licor de leite degustado em pequenos sorvos, apenas iluminado pelo lume que baila em labaredas de azul-laranja, exalando resina, labendo as paredes escuras da chaminé - o ambiente que se impõe para um momento de introspecção. Talvez seja isso que falta a muito bom comuneiro cá da paróquia, parar para pensar! Reflectir!
Os acontecimentos patéticos sucedem-se e asseveram a crise de valor acrescentado que mina a nossa desventurada corte de homens d’ estado, o barriguismo prospera, a política decente, tão imprescindível como o cereal para o pão da boca, está mais do que nunca em roda livre, a preciosa alteridade esfuma-se numa prática de tiques comuns de la droite à la gauche, pois o denominador é o comum, insensatez e muito, mas mesmo muito, despudor!
Talvez por isso um duche frio e uma valente coça de bagaço de medronho pudessem pôr cobro às mais que evidentes e previsíveis estratégias já no terreno, gizadas em bolorentas reuniões de comparsas – gestão de silêncios à la carte, rajadas de metralha ao neo-liberalismo que engorda a própria continha, limpeza a seco das consciências e das responsabilidades, fazer crer que a preocupação maior somos nós, e tudo isto revelado apenas num facto, a tremenda incompetência para escolher os melhores. E será que estão disponíveis?
Mas a culpa de toda esta tragédia é sem dúvida da democracia, essa patomina das sociedades civilizadinhas que atribui um cheque-voto-surpresa a cada imberbe eleitor. A culpa é da porra do sofá que amolece o nervo da inquietação. A culpa é da merda da televisão que nos emprenha com novelas. A culpa é dos gajos que lá estiveram. A culpa é dos cicranos que lá estão. A culpa é da testosterona e da bola e do filho da puta do árbitro. A culpa é sempre dos outros. A culpa nunca é minha, tua, ou de outro cabrão qualquer! Neste país pequenino, nunca ninguém é culpado, e porquê? Porque os culpados são sempre uma desculpa para a nossa própria culpa. Fiz-me entender?
Pois que, para terminar, permito-me (permitam-me!), a contra-gosto, um inusitado pedido de desculpas pela severidade deste arrazoado, ela é apenas a expressão da desilusão que sinto ao olhar o lume que baila nesta modesta lareira do Casal da Formiga, mas que não liberta o calor que tanto desejo. Isto, confesso, para além do facto de hoje ter olvidado tomar o comprimido para os nervos. Coisas da andropausa. Mas, para além dessa milagrosa pílula que me põe os ditos nervos sossegados, como poderei eu ultrapassar esta incontida descrença? Poderá ainda restar a fé, dir-me-ão vossas senhorias. Mas, returco eu, como poderei confiar em quem cometeu tamanho disparate ao sexto dia?



23 – O Ano da Desgraça de 2009?


Marinha Grande, 22 de Janeiro de 2009

Implacável, inexorável, um segundo para além do cruzamento perfeito dos ponteiros no zénite, por imposição dos relógios atómicos e dos supositórios anatómicos que nos enfiam a torto e a direito para alívio da crise e das dores da puta da enxaqueca, o sino da igreja matriz fez soar as dozes badaladas da ordem com que anunciou o finado ano magro e proclamou o novo escanzelado: “preparem-se que vem aí o Cabo das Tormentas” – tugiu o engenheiro em tom premonitório, sem conseguir dissimular uma pitadinha de cólera de superior hierárquico da função publica - que me perdoem os assalariados dessa prestimosa instituição para a qual descontamos a bom ritmo - túmido e crespo, revoltado pela crise lhe ter roubado a glória, a ambicionada ovação da bancada central nos cem metros finais, desembaraçado que parecia estar da abambochada concorrência, a contas com bolhas nos pés e tilomas nos indicadores de ambas as mãos. E logo agora que se aprestava para transpor ufano a meta sob o olhar cabisbaixo e abobalhado da líder nectarina e da tarouquice dos sindicateiros bacocos que há décadas lambem compungidos as chagas dos outros. Abram os olhos néscios, o caminho que falta para a meta poderá ser o epílogo trágico e apocalíptico dum Estado penurioso que distribui farfalhas e sardinha enlatada a pataco, em troca das urnas recheadas de indulgentes “sins” dos carneirinhos do costume. De quatro em quatro primaveras, que é p’ra não enfartar.
Mas ao mesmo tempo que as badaladas ressoavam, vindas do campanário que em tempos foi de igreja em talha dourada, aniilada pelo betão da estupidez dos descrentes que delapidaram a herança patrimonial de ilustres ascendentes, o estalo provocado pela abertura da garrafa de espumoso pífio, comprado no Lidl, fez soar na minha desordenada cabeça uma campainha de alerta – espera lá que este é ano de botar voto, menino! Aliás, de botar votos! Urra, urra, c’uma porra! - logo a flatuosidade da coiçoeira rolha do indubitável champanhês me havia de despertar para o sórdido pesadelo - a tendência dos coronéis da roça para o tresvario em vésperas da ida às urnas. Irra, irra c’uma pirra - em vez d’uma vais ter duas crises, menino – a do costume e mais a mana que vai a engordar no nado ano pelos costumeiros brindes eleitorais. Santa Marinha nos valha e mais o padroeiro dos pedintes, que a carteira está furada e o túnel não tem fim à vista...
Desanimado? Esmorecido? Não, nada disso, cá o menino está é apreensivo, só isso, apreensivo e prontos. Afinal um país que produz políticos desacanhados, intelectuais de aviário, jogadores da borla e artistas pumba a um ritmo superior ao que a Izidoro produz chouriços de sangue, só pode ser um país com futuro, só pode ser um país com dinâmica de vitória…
Pois aí é que está o busílis do algoritmo, pensamos todos - pois se está tudo inventado e se a coisa não resulta a solução só pode estar na qualidade dos homens, dos líderes, dos timoneiros, pois lá está! Pensem aqui com o menino – os estudos estão feitos, os diagnósticos são conhecidos, as prioridades estão definidas, a agenda está mais que marcada – páginas 21 e seguintes, a saber: vias circulares para desafogar, saneamento para desaguar, piscinas para nadar, escolas para ensinar, blá-blá-blá, blá-blá-blá… e mais três ou quatro floriados só ao alcance dos mais iluminados - a cereja nos píncaros. Então o que é que falta, caramba? Fácil, muito fácil mesmo: massa cinzenta, da boa, crítica, criativa, carismática, espevitada, aprumada, massa cinzenta da melhor, que a que por cá (e por lá) tem andado, depois de levedar, esboroa-se toda e faz-se em nada, como dizia a minha tia Casimira. Que Deus a tenha em boa conta.


24 – Vacuidades


Marinha Grande, 03 de Abril de 2009

Baralha, parte e dá, baralha, parte e dá - pim-pam-pum - já está! Atenção cavalheiros, useiros e vezeiros, damas ao bufete que se vai dar início às quadrienais Lutas Intestinas! Os costumeiros alfarricoques vão tomar posições e em suas mãos os destinos da nação e a defesa da honra, uma espécie de jogos florais em que ganham sempre as tubas canoras e belicosas que insuflarem o mais imponente e habilidoso vazamento de tripa, apoiados por aperaltados comparsas lambe-botas. Brruuummmm – já está! Mas, convenhamos camaradas, apesar do aparato e das parangonas que vendem papel de rotativa a rodo, é o momento mais incolor, inodoro e insípido da nossa desbotada democracia, um momento tão previsível como a quantidade de cuecas borradas que sobram em consequência da fratricida peleja, um pungente e lancinante dó d’alma e de assaduras cutâneas, polvilhadas com camadas de talco e unguento gordo, para apaziguar as dores dos que não viram reconhecido um lugarzinho nas listas. E colunas vertebrais partidas? Também, algumas. Muitas. Talvez nem tantas, que muitos há que a deixam com frequência dependurada no guarda-fatos.
Para os que não têm estratégia nem rasgo, a aposta vai toda para genialidade da figura providencial, para o candidato papal, o homem iluminado que trará progresso e bonança, alegria e fartança, o eleito dos eleitos, que para cair em desgraça basta que não tenda bem a massa, que não a acomode ao jeito dos siliginários de cacete e fralda. Não, este é muito melhor que o outro, que os outros... este é que é!...
Já para os que evidenciam grandes dificuldades em triar o dito candidato, ou a paridade, o segredo não está na massa mas no molho, nas ervas aromáticas e nas azeitonas, que o importante são a iluminura das intenções e a lustreza das ideias, as mais eruditas e avançadas, desenhadas a régua e esquadro por perspicazes visionários, fruto de aturada esculca e denudado debate com a sociedade civil cantas-bem-mas-não-me-alegras. Um fartote...
Mas para os que vertem sabedoria, ciência e água de fezes inócuas nos leitos dos ribeiros, transformando as suas águas em miraculosos, purificadores e providenciais fluídos medicinais, termais, a esses predestinados que fervilham ideias como pipocas, a esses não há mal que lhes chegue, c’um carago, a esses haver-lhes-á de valer o povo trabalhador, o povo que mais ordena, o povo que crê pio na mansidão do tom coloquial e na bondade circunspecta do Benedito, que sucedeu ao outro, o proscrito. “E a obra, catano?” questionam vossas excelsias, desconfiadas, mirando o espectro. A obra dela, da estouvada coligação pois claro, está aqui, está ali, está em toda a parte - numa lomba altaneira, numa barraca de legumes, no leito de um ribeiro, numa moderna escola de proximidade, na "ilha" da Bernarda, num armazém de garrafões, num piquenicão, no Tarrafal, em Cuba, na lua, eu sei lá – está em todo o lado, c’um carago!...
E é por tudo isto e por muito mais, que há-de vir, que se afigura oportuno rememorar as palavras sábias, intemporais e avisadas do Brigadeiro Tomás Candeias de Sá, meu ilustre professor de álgebra:
“Um líder sem equipa, é uma perda de tempo. Uma equipa sem líder, é uma desgraça. Um líder e uma equipa sem estratégia, é um embuste!”
Estranha terra esta que para debelar extensas e dolorosas metástases, corre insana atrás de uma aspirina... Enfim!...


25 – Os Cristãos, os Mouros e os Ímpios


Marinha Grande, 31 de Maio de 2009


Juris et de jure e re-béu-béu-béu pardais ao ninho, até prova em contrário, à política compete organizar e administrar o Estado, um digno e honrado exercício a bem da causa comum, aspiração suprema de espíritos maiores e que alguns amanuenses facilmente confundem com presepada, um espectáculo vulgar e deprimente de fadunchos e guitarradas, à desgarrada, mugido por marialvas e arruadores farsolas de garganta laça, soltando fífias a cada tentativa de acorde.
Mas como uma tragédia nunca vem só, à confusão do conceito, e da praxis, para ajudar à festa junta-se uma invetiva dos fazedores de ciência política, cabotinos zarolhos, seus derivados e sucedâneos, à qual deram o bonito e sugestivo nome de “Agenda Política”, um eufemismo para designar uma vulpina moleskine mad in loja do chinês, cujo calendário Juliano foi substituído, inocentemente, pelo calendário das urnas, e onde os dias não são marcados pelas prioridades políticas mais genuínas mas sim pela discricionariedade do “Hoje não se fala disto porque não, mas amanhã já é importante falar disto porque sim! Hoje não se faz isto porque não, mas amanhã já se faz isto porque sim!”.
Vem toda esta prosápia a propósito de um problema de semântica, em resultado da eloquência com que um homónimo do Conquistador, no calor da entronização a pretendente ao trono do Reino da Conquilha, se referiu à moirama. Vai de retro satanás! E Zás e zás! Logo saltou a terreiro à espadeirada, qual Brites d’Almeida ofendida, um dos mais altos, senão o mais alto dignatário da cúria, insurgindo-se contra o blasfemo – pois que não senhor, pois que esta abençoada paróquia é uma terra santa, livre de almorávides, armas nucleares, toiradas e anões galhofeiros - desafiando a vir à praça do pelourinho os restantes bergamos da corte, para desdizer o desdito e para separar as águas, que estas coisas dos tiques xenófobos provincianos, não matam mas apoquetam.
Pois eu, um sujeito ímpio e inocentemente ingénuo, que prefere cidadãos instruídos a políticos versutos, confesso que muito mais me agradaria ver reptos e apelos a outras sabatinas. Em vésperas de ir à urnas preferia saber, se vossas excelências assim o permitissem, quais as genuínas predesposições pós-eleitorais, no fundo, e desculpem-me a candura, saber com o que contar -se com o ovo no cú da galinha, se com a galinha no cú do ovo. É que, curiosamente, estou farto de meias verdades, de meios mandatos, de meias doutrinas, estou farto de ser ludibriado, estou maçado, quero votar em consciência, se é que me é permitido o luxo. É por isso que me estou nas tintas para o que dita a moleskine da loja do chinês, e para as costumeiras pirraças, e para a conversa de encher chouriços e pasquins, e para os comícios, e para as arrudas, e para as feiras, e bandeiras, e pendões, e pregões… o que eu quero verdadeiramente, o que eu exijo, se vossas excelências assim o permitirem, é a nata, a substância, o azimute! É que esta merda de assumir compromissos é tramada, não é? E afinal o que eu quero é tão simples - quero um compromisso sério, de gente honrada, que nos resgate da prostração, que nos tire do cú do distrito, do cú do país, do cú da Europa! É pedir muito, senhores candidatos a qualquer coisa?



26 – Os Artistas que Paguem a Crise


Marinha Grande, 29 de Junho de 2009


Porém, só uns breves dias após, atingi o alcance e o profundo sentido dos erros da governança socrástica, consentidos num exercício de autocrítica, antecipado à pressão para o período vital do pós euro-hecatombe. E os assumidos erros, impregnados de humildade e de escrúpulo democrático, desta feita foram revelados, não na rudez e aspereza do papiro, como outrora, mas na leveza e suavidade do papel de cópia de 80 gramas da Xerox, onde foram delicadamente impressos os “Novos Diálogos de Platão”. De entre eles, subitamente, um toma forma e dimensão de tremebunda fatalidade: “deveríamos ter investido mais na cultura!...” Ah pois era... pois era... Mas se lhes serve de consolação, é bom que se acentue que tal desmesura para com a erudição já não é de agora, já vem do tempo do Botas. E como não constava nos três D’s, também não se cumpriu...


Sem que nada o fizesse prever, a fazer fé nos contratos multimilionários e no ror de espectáculos aprazados para este verão nas capitais da civilização, heis que, sem tão pouco avisar os fãs, num “ai” exclamado entre uma última dose de morfina e um último aconchego nos tomates, imagem de marca do seu inebriante estilo de king da pop e da dance, o artista negro que tinha vergonha da cor da sua própria pele sucumbiu aos maus tratos auto-inflingidos. E agora, o que será de nós sem Michael Jackson?
Bastou pois que o monarca da pop se tivesse finado para que “o país e o mundo” passassem a respirar ao ritmo da informação espectáculo de última hora, e ao compasso da habitual corte de carpideiras que povoam este cada vez mais bizarro planeta. Televisões, rádios e jornais, em uníssono, passaram a dedicar-se em exclusividade e em contínuo ao drama, ao horror e à tragédia da morte do popular artista. Num repente o mundo esqueceu o Irão, o avião da Air France, a pandemia da gripe, a crise internacional, as orgias e as snifadelas de Berlusconi, e o país, afilado aos mais rigorosos ditames da modernidade informativa afinou pelo mesmo pífaro, deixando para trás das costas e da irreparável dor causada pela morte precoce da pop star, a crise, o desemprego, a compra da TVI pela PT, os assaltos ao BCP, BPN e BPP, o Freeport e a sua procissão de arguidos, o TGV e mais o aeroporto, e mais a Autoeuropa e mais uma resma de empresas que ameaçam fechar a qualquer espirro de uma inocente e anónima borboleta asiática. Tudo se passou a centrar em directos e indirectos de Los Angeles e de outros lugares com nome e sem nome, entrevistando todo o bicho careta com uma história extraordinária para contar sobre o já mítico cantor bailarino. Desde a velhinha que rogando à providência da Sra. de Fátima, para que lhe curasse a ciática, viu surgir de uma nuvem negra, em lugar da dita senhora, o espectro descolorido do milagreiro Michael, envolto num fato espacial de latex, até um jornalista que um dia esteve a menos de um metro da vedeta e que quase, quase, lhe sentiu o bafo a leitinho com essências de baunilha, tudo foi chamado a opinar sobre a figura, o estilo e o legado. E não fora alguns vícios menos recomendáveis, por certo até já estaria na calha para fazer companhia ao Condestável, o tal que chacinava espanhóis como quem comia tremoços, ou então, como dizia um apreciado crítico musical num manifesto e incomodo exercício de branqueamento de capital humano: “separe-se o homem do artista”. Pois, pois, mas eu não consigo, meu caro. As minhas desculpas. É quase como pedirem-me para venerar o brilhante professor de Coimbra e para olvidar o bolorento ditador de Santa Comba. Os meus escassos recursos intelectuais não aguentam a intricada equação: homens quase perfeitos num mundo quase perfeito. Falta o quase...
Confesso contudo que não me dei por vencido, apesar da dose maciça de Michael, sósias, imitadores, fãs, conhecidos e outros mamíferos, que tentavam saltar do pequeno ecrã e inundar a minha modesta sala de jantar, ao Casal da Formiga, sempre que tentava pôr no on o botão do televisor. Procurando olhar o fenómeno em abstracto e matutando um pouco no sucedido, o que no meu caso não é tarefa grata, consigo concluir o óbvio, estou a ver a questão sob o prisma errado. Afinal o sacrifício do verdadeiro artista sarou por dias as chagas da humanidade, incluindo as da Lusitânia. Donde se conclui que, se para resolver os problemas de um país à beira do abismo financeiro e de uma implosão social, com contornos por avaliar, for necessário sacrificar uns quantos artistas do show bis, então que se comece por descarregar a cartucheira da G3 no Toni Carreira que o povo lhe chorará os feitos e lhe saberá reconhecer os méritos. Garanto que o país lhe ficará grato para sempre, embora para a cultura a perda seja irreparável! É que bem vistas as coisas matam-se três coelhos de uma assentada: recupera-se o país, ignoram-se as aleivosias de mais duas campanhas por votos e faz-se um sério aviso ao outro Michael (o Carreira), à Floribela e às outras estrelas fumegantes das artes emergentes - Cuidado(!), não insistam em querer trilhar o sinuoso caminho da cultura, que podem ser os próximos artistas a pagar a crise. Um sacrifício a bem da nação e do ambiente!...



27 – Bimbi? Não Obrigado!


Marinha Grande, 09 de Setembro de 2009


Finada a vacação abundantemente abençoada e aspergida com banhos de mar salgado e de termas sulfurosas e vínicas, frutadas e desfrutadas, voltei à pacatez do Casal da Formiga com mais cinco quilos setecentas e vinte, mas não sem antes ter derivado a Pedreanes, para provisionar três sacos de pinhocas e quatro braçados de caruma, que o Outono vem aí num já. Vieram-me os bofes à boca.
Os primeiros dias foram dolorosos, o ócio e as gorduras acumuladas, fizeram-me arrastar penosamente pela correspondência, pelos pasquins da região e pelos milhares de panfletos promocionais que empanturravam a minha caixa de correio (comprada há um par de anos no Barroca), o que só veio agravar o meu estado pré-comatoso.
O tédio e a moral só subiram com o telefonema da prima Adelaide dos Poços de Água, pedindo-me “encarecidamente” para receber a afilhada, Maria Manuela, com o intuito desta me apresentar uma tal de Bimbi. Confesso que a singularidade do nome e a inesperada oportunidade de conhecer alguém certamente interessante me despertou os sentidos, causando-me, inadvertidamente, um inoportuno... rubor pueril nas faces. Não dei parte de fraco e fiz-me rogado, sem sequer questionar o que teria passado pela cabeça da prima e da afilhada, para se lembrarem de me apresentar a dita. Presumi instintivamente que a fama e o proveito de outros tempos bem mais gloriosos voltara, para honra e complacência da enferrujada adriça - as coisas que passam pela cabeça de um inocêncio sexagenário.
Face à “insistência” da prima Guilhermina, lá anuí sem ponta de contrariedade, é certo, imaginando a amiga de Maria Manuela - pelo nome só podia ser uma bela jovem de traços exóticos, silhueta suave mas vincadamente feminina, cabelos lisos, compridos, pernas longas, mãos delicadas, quem sabe?!...
No dia e hora aprazados lá recebi Maria Manuela, envergando camisa branca por fora das calças, exalando a lavanda, e o ralos cabelos besuntados de gel, penteados para trás à matador. Sentia-me o conquistador de outros tempos, um autêntico Druval no seu melhor estilo.
Maria Manuela, que já não via desde os tempos da Fábrica Escola, estava bojuda, engelhada e faltava-lhe um dente da frente – “nem queiras saber, estava ontem à noite a comer um coirato e caiu-me o pivot” – disse-me ela tentando tapar a falha do dente com o indicador direito, rindo nervosa, crendo que eu acreditava que ela alguma vez na vida tinha posto um pivot. “Que maçada” disse-lhe eu agoniado com a história do coirato e começando a desconfiar do desalinho, da pele descuidadamente oleosa e da ausência de companhia. “Vieste sozinha?” perguntei-lhe eu afiando os caninos. “Vim, pois. Trago aqui a Bimbi para te apresentar” respondeu-me pronta, apontando para o caixote que trazia com alguma dificuldade, debaixo do braço. Esmoreci... Devo ter ficado tão aparvalhado que a oleosa criatura perguntou se me estava a sentir bem. Deu-me vontade de a despachar com um biqueiro no nalgueiro volumoso, mas contive-me a tempo. Afinal a Bimbi que eu, guloso, imaginara de formas voluptuosas e de sotaque açucarado, não passava de uma panela-faz-tudo: “descasca, pesa, rala, corta, bate, mistura, mexe, frita, guisa, coze, pana, esturge...” gritava sem respirar e quase histérica, Maria Manuela.
Zonzo pela desfeita, aguado, comecei a alucinar com a minha ex-empregada (a brasileirinha) que fazia tudo aquilo e muito mais enquanto o diabo esfrega um olho! Não me consegui conter: “E também geme? E arranha? E morde? E ma...”. A última já não a terminei, fui interrompido por uma valente galheta puxada à costa da mão direita, deixando-me marcado na cara o horripilante cachucho de pechisbeque comprado num sorteio da Orivesaria Barosa. Maria Manuela, furibunda e ofendida, tinha desatado num choro compulsivo e num chorrilho de insultos, a mim e à minha mãezinha, que de tão graves nem me atrevo sequer a reproduzir nenhum.
Atordoado e sem reacção, limitei-me a observar de queixo caído a matrafona a enfiar tudo no caixote com brusquidão e a abalar como um furacão porta fora, insistindo nos impropérios contra a minha santa mãezinha. Ao sair ainda olhou para trás por cima do ombro, atirando com desprezo e ódio: “e Bimby escreve-se com y, ó vacão!”. Mortal!...
Senti-me ferido, ultrajado, humilhado, com tanto desplante. Sobretudo porque a bicha nem me deu tempo de reacção. Nem me deu tempo de ser eu a enxotá-la, a urrar-lhe aos ouvidos que estou farto de ser usado, que estou farto de ser enganado, que estou farto de pseudo-simplificações relambórias, de panelas faz-tudo, de gente faz-tudo, de gente telecomandada, guiada, oferecida!... O que eu quero não são panelas faz-tudo, nem carolas, o que eu quero é gente que pense pela sua cabeça, que queime neurónios, que tenha ideias e soluções, que tenha projectos, que seja visionário, que antecipe o futuro e que tenha o gosto e o prazer pela subtileza dos pequenos gestos.
E agora que já desembuchei, vou descascar batatas que se faz tarde para o almoço. A panela faz-tudo que se quilhe!


28 – 12 de Outubro


Marinha Grande, 08 de Outubro de 2009


Sopa de cação e pézinhos de coentrada, abundantemente regados por um soberbo Alfaraz Reserva Tinto de 2006, um complexo multicasta produzido nas afamadas termas da Vidigueira, obrigaram-me a permanecer de vigia com o bandulho a trabalhar à razão de 1.000 rotações por minuto e os intestinos a roncar como as dez trompas da Segunda Sinfonia de Mahler, embora os olhos e a cabeça suplicassem pelo conforto do colchão ortopédico comprado no Lopes, quando a espinha começou a acusar os danos irreversíveis dos maus tratos infligidos pelas loucuras da juventude e das companheiras libidinosas que passaram pelo travesseiro imperial do Casal da Formiga.
É sempre assim quando, uma vez por ano, no 5 de Outubro, rumo a uma pequena aldeia do concelho de Portel para dar vivas à república com o meu compadre e indefectível companheiro Manuel Casquete Cachapa, um alentejano orgulhoso, fino que nem um alho, arguto, comunista dos quatro costados, um irmão com quem comungo de modo desabusado e peito aberto a utopia e a divisa proclamada por Rosseau - Liberté, Egalité, Fraternité. Entre nós o mais importante não são as diferenças, antes pelo contrário, elas são a argamassa da nossa união de facto que dura vai para mais de trinta e muitos anos, dos tempos em que partilhámos a G3, o cantil e as longas tardes de domingo sob um sol abrasador, passadas debaixo dum imbondeiro, ansiando pelo regresso a casa, sãos e escorreitos. Depois veio o regresso e as longas tardes de domingo sob um sol abrasador, passadas debaixo dos chaparros de S. Bartolomeu do Outeiro, ressacando de dois anos de balas e de perdas irreparáveis, discutindo Marx e Engels, recitando Prévert, bebendo malgas de vinho e as palavras irredutíveis do poeta anarquista:
Empregado contra a vontade na fábrica de idéias
Recusei-me a marcar o ponto
Mobilizado mesmo assim para o exército das idéias
Eu desertei
E quando o vinho nos alagava os capilares e as memórias os olhos de lágrimas, as discussões atingiam, não raras vezes, a intensidade do ponto de ebulição e as hormonas e os punhos entravam em acção, até que um de nós visse escorrer no nariz do outro, um fino fio de sangue que anunciava o armistício – estava selada a nossa camaradagem. Abraçados e descompostos seguíamos passo trocado para a taberna do Xico Ministro, a fim de rematar a missão de sobrevivência. “Estranha amizade”, dir-me-ão os mais cépticos. Nada disso, meus caros, nada disso. “E porquê?”, insistirão vocês, os mais cépticos. Simples, demasiado simples. Porque entre nós há uma preposição nuclear que condiciona a nossa reserva mental e que marca a nossa inabalável convivência: o respeito mútuo. Porque as diferenças são a argamassa da nossa união de facto que dura vai para mais de trinta e muitos anos e porque elas nos fazem perceber que, embora por caminhos diferentes, o nosso destino é comum, e é nele que fundimos a nossa vontade e a nossa bandeira: Libedade, Igualdade, Fraternidade! Fui claro?


Independentemente de quem ganhe ou perca no próximo domingo, não devemos esquecer que há uma coisa que nos deve unir a todos, um grande amor à nossa terra. Talvez essa seja a argamassa que a nossa Marinha Grande tanto precisa para que as diferenças sejam de uma vez por todas factor de união. Concentremo-nos no essencial.


29 – Oráculo


Marinha Grande, 22 de Outubro de 2009


E como o tempo começava a rarear e a ânsia pelo provir generoso era já mais do que muita, na ausência de Diocleciano, alquimistas, cunicultores, catedráticos e colectores, reuniram para tentear e solucionar: pontes ou túneis? – heis a questão.

Nestes tempos de indefinição, pós mijinhas e hirsutos alcaides, gostaria de expressar um pensamento que me tem tomado o miolo desde há alguns dias. Coisa de somenos.
Para unir de forma efectiva e praticável dois pontos inacessíveis entre si, permitindo calcorrear esse caminho de forma avisada e confiante, só conheço dois modos: as pontes e os túneis. Embora o resultado final se anteveja o mesmo, no que toca a este vosso prosaico concidadão, que toma algum do seu tempo a matutar nestas coisas de imberbe interesse, confesso que prefiro as primeiras às segundas. Nas pontes, vemos e somos vistos, admiramos a plenitude da paisagem, partilhamos reconhecidos o engenho e a arte dos que sonham e desafiam as leis da física para combinar natureza e materiais, cálculos e sonhos, bom senso e temperança, saboreamos a travessia que nos leva seguros até ao ponto de chegada. Por isso mesmo prefiro as pontes aos túneis, a vertigem das alturas à claustrofobia das profundezas. Convenhamos, à torre de Paris, todos exibem na ponta da língua o seu genial autor. E ao túnel da Mancha? Alguém se lembra do progenitor? Claro que não, porque as aves voam e as minhocas rastejam – ser e parecer, tal como a companheira do augusto César. Mas não será este meu cogito apenas e tão só uma mera questão de retórica sem qualquer apoquento? Talvez. Não sei.

E agora descendo à terra: se por mero acaso virem por aí o Sr. S. Pedro, façam o favor de lhe dizer da minha parte, que antes que torne irresponsavelmente a verter águas como quem metralha fogo à peça, ele que mande um funcionário para desafogar as sarjetas do Casal da Formiga. É o mínimo...



30 – Alguém viu por aí o S. Nicolau?


Marinha Grande, 22 de Dezembro de 2009


A verdade é que tenho passado um bocado mal. A saúde anda ruim, já não é a de outros tempos, e uma hiperuricemia motivada pela maldita gota tem-me dado água pela barba. Se a tudo isto juntarmos os bicos de papagaio, a enxaqueca, o ardor esofágico permanente, o catarro persistente, mais o colesterol e a tensão descontrolada, uma unha encravada, uma espinha na garganta, o desconforto dos joanetes e a seborreia no cocuruto, facilmente se compreende que, apesar da época ser festiva, estou de rastos, desesperado, ao ponto de ponderar a hipótese de recorrer à bruxa boa do pasquim do Tózé, rogando-lhe os seus abnegados préstimos para me debelar das maleitas e para me levantar a moral, já que de prostração localizada também padeço.
Foi por estas e por outras que decidi, como noutros tempos, aproveitando uma nesga de soalheiro, dirigir-me directamente à pharmácia sem passar pelo calvário do SAP, para suplicar um bálsamo milagroso, uma alquimia que me devolvesse o espírito da quadra, a auto-estima, ou um simples paliativo para me fazer esquecer que os anos que vão passando como cão por vinha vindimada não auguram nada de bom, a não ser contribuir para o aumento da carteira de encomendas do afável Pina.
Introduzi-me num desses estabelecimento que agora ostentam uma cruz pisca-pisca verde e uma maquineta de senhas à entrada, tendo sido prontamente recebido com salamaleques e mesuras de circunstância por um beltrano de trato comercial e olhar distraído. Cumpridas as primeiras formalidade e enquanto o tipo ía esfregando vigorosamente as mãos com uma solução alcoólica, não fora eu também trazer o bicho da gripolina entranhado na cútis ou no sabugo, desfiei-lhe o meu calvário e quase que fui surpreendido pela sua resposta: “caro amigo, diagnósticos não são o meu departamento, a minha função é meramente aviar prescrições.” De facto senti confirmada a minha intuição à primeira mirada: o homem não parecia ter olho clínico. É certo que, recorrendo eu ao fim da linha, outra coisa não seria de esperar. Tentei nova abordagem: “eu bem sei que não é médico, por isso não lhe peço que encontre as razões da minha moléstia, mas tendo o senhor experiência na matéria e presumindo eu que até já lhe tenham passado pelas vistas casos similares, será que me podia aviar um alívio para o corpo?” Quase que fui novamente surpreendido pela sua resposta: “olhe que eu não sou o Pai Natal. Diga-me por favor o que pretende, pois tenho muito que fazer” - atirou meio distraído meio convencido, coçando com a tampa de uma esferográfica Bic, e já com visível irritação, a farta peruca astracã.
Agastado com tanta insensibilidade ao meu desespero e à minha hipocondria, joguei alto e decidi fazer bluff: “quem me disse que o senhor era muito jeitoso e que até era capaz de me ajudar, foi uma vizinha minha que vende mosquetas no mercado das barracas e que até é da sua criação”. Num zás deu-se o clique! Ao cheirar-lhe a panegírico, mesmo sem lhe ter reconhecido a origem – vá-se lá saber quem era a bisca vendedeira da sua criação, que nem eu sei quem é – o ego inflou e pronunciou-lhe um pescoço de perú a que o rubor acrescentou exuberância – “se é esse o caso” – aquiesceu com ar doutrinal – “vou-lhe já tratar da saúde!”. Bem dito, bem feito. Voltando-se para o ajudante, com voz colocada de comando, assumiu as operações e ditou o despacho de pronúncia, enquanto frenéticamente arregaçava as mangas da bata branca: “traga-me aí uma embalagem de aspirinas e uma caixa de Ferrero Rocher, para aliviar as dores deste amigo que sofre.” Baqueei perante tamanha bizarria.
A contragosto aceitei o saquinho publicitário contendo a milagrosa receita e respondi-lhe com mão mole ao cumprimento de despedida. “As melhoras” – disse ele mecanicamente e de olhar vagamente condoído, enquanto eu tentava desesperadamente alcançar a solução alcoólica para passar pelas mãos. “Obrigado” – respondi-lhe sem convicção. Na minha cabeça apenas uma coisa era certa – se o São Nicolau não existe, este ano não passo o Natal. Ele se quiser que passe por mim e que traga saúde! Para mim e para todos, são os meus votos.


31 – O 5º Poder


Marinha Grande, 08 de Fevereiro de 2010

No país dos Crespos, dos Monizes e das Cabritas, a vida corre com inexorável vertigem em direcção ao abismo, ao ritmo do défice e da dívida pública, do malhão e do bailinho, dos bufos e das bufas, das escutas, do segredo de justiça esguichado nas rotativas como um pútrido fluxo de ventre, a conta gotas – aliás como convém num estado de direito com uma "democracia consolidada" - consolidadíssima, upa, upa!
Sob o olhar complacente e conivente de todos, o pilar da Justiça, pedra angular da construção democrática, ameaça ruir já hoje (!), tomado que foi pelo justicialismo entregue ao 4º poder em salva de casquinha. Uma ordem da Justiça vale tanto como um caracol e as escutas mandadas incinerar no Outão são postas ao Sol em pleno rigor do inverno, arrasando a credibilidade das instituições, reduzindo a cinza aquele que deveria ser o nosso maior penhor de confiança - o Sistema Judicial. Tudo normal.
A moral e os bons costumes, e a decência, vá, recomendariam que o país fechasse para obras e para limpeza geral, mas não. Os zelosos governantes, os abnegados opositores e a carneirada eleitora, em geral, acham que tudo não passa de uma enxaqueca do período, uma daquelas cirúrgicas e oportunas dores de cabeça que adiam para amanhã o que se deveria fazer hoje. É que bem vistas as coisas a verdade verdadinha é que somos um país adiado há mais de oitocentos anos, e o que vem a seguir é, por regra, tão bom ou pior que o antecedente. Razão tinha o saudoso Almirante Alves de Aragão quando, da imponência dos seus metro e noventa e dois e cento e quinze quilos, acentuados pela voz grave de canhão de proa, pulverizava os jovens cadetes da Escola Naval, impecavelmente alinhados no anfiteatro principal, com a sapiência da sua notável folha de serviços: “para se comandar um navio exigem-se nobreza de carácter, qualidades pessoais acima da média e o domínio de noções tão fundamentais como: estratégia, táctica, eficiência e eficácia. É assim na guerra, deveria ser assim na política!” E o que é que se vê? Nem nobreza, nem qualidades, nem domínio das noções. Ser pulário do aparelho, peralta e bom palrador é o que se exige para ascender aos senáculos. “Mas a participação democrática não se esgota nas urnas” repetem-nos vezes sem conta, fazendo crer que o seu interesse pelos cidadãos é genuíno e vai muito para além dos nossos preciosos votos. Uma porra, é o que é! Se um gajo não vota, é porque não vota. Se um gajo vota, é porque só vota. Mas se um gajo se predispõe a pôr a sua inteligência e o seu saber ao serviço da causa pública é porque o gajo se está a candidatar, não a um tacho que isso é tão vulgar como obrar sentado, mas a um trem de cozinha em aço inoxidável, a expensas do Estado-Teta. "N'é filho?"
Mas a merda toda é que um azar nunca vem só e para compor o ramalhete, em semana de desorientação geral, tinha de vir o Almunia, esse quadrúpede castelhano feito moço de recados da Comissão de Mr. Cherne, destilar o ódiozinho figadal ao vizinho ibérico, assinalando aos mercados a verdadeira fonte das metástases. Acto contínuo, os fulaninhos das agências de rating, paladinos do regular funcionamento da mão invisível, logo trataram de puxar o lustro à bola de cristal e, entre uma coçadela de tomates e um café expresso, lá aumentaram a notação da República, sem qualquer peso na consciência. E agora, carago? “Corta-se na despesa, baixam-se os salários!” Isso, isso, pois que seja: comecem por reduzir a metade os parlamentares da corte e as benesses à legião de assessores, consultores e associados, a bem do erário público e das insónias do Teixeira dos Santos, que eu assino por baixo com a minha melhor caligrafia. Só que desmantelar a mama do Estado é uma maçada porque, no fim de contas, no fim de contas dá para quase todos, isto é assim em todo o lado, no poder central e no poder local, nas empresas públicas e nas municipais, nas obras e nos pareceres, nas derrapagens. Deixemo-nos de pruridos e ponhamos os nomes nas coisas, o que se passa de uma forma geral e banalizada é aquilo que até um humilde funcionário do Pingo Doce consegue identificar com rigor: trata-se da aplicação em larga escala da famosa “engorda química”, um tratamento de sais e água destinada à engorda artificial do polvo, sem qualquer criação de valor, sem qualquer criação de riqueza, com excepção da riqueza do próprio.
É pois certo que nós também temos um Sócrates. Mas não somos a Grécia, c’uma porra! Nada de confusões, qu’é isto?! Ó Senhor Professor Presidente, diga lá aí aos mercados para não se baralharem, se faz favor. Explique-lhes que o Sócrates lá dos gregos era lá um fulano mal-odoroso e feio, que se divertia a pensar o mundo e a vida, e que o nosso é um charmoso sósia do George Clooney, com o ego do tamanho da Grécia e com toda a subtileza política que se pode encontrar concentrada numa ervilha, um galã que se dedica a tratar do país e da saúde aos que não lhe são agradáveis aos tímpanos. Só tem um pequeno problema, aparece muitas vezes no sítio errado à hora errada. E isso é muito azar, pá.
Mas a maior ironia de todas é que estas dificuldades são ultrapassáveis. Bastava que nos ouvíssemos, que ouvíssemos os melhores, sem reservas mentais, que usássemos na gestão da República da mesma inteligência, da mesma ponderação e da mesma parcimónia que procuramos usar na condução das nossas insignificantes vidas, quando arriscamos e quando jogamos pelo seguro, quando decidimos se havemos de comprar um T2 na Rua dos Outeirinhos ou uma vivenda na Embra, um Toyota ou Porche, quando decidimos se havemos de poupar ou fazer uma viagem de férias, quando decidimos se havemos de comer peixe ou carne, se havemos de comer a patroa ou a sopeira, brasileira. Irónico não é?
Deixemo-nos por isso de vacuidades e dêmos pois lugar ao quinto poder – a inteligência!


32 – O Processo


Marinha Grande, 22 de Dezembro de 2009

Cheguei ao tribunal pouco faltava para as três da tarde, enfiado no velho fato de cotelê verde seco que herdei do padrinho Arnaldo, no dia em que o saudoso mecenas entregou a alma ao criador, um fato que me assentou que nem uma luva durante anos, mas que agora ameaçava explodir a cada inspiração menos controlada. Às vezes para parecermos arrumadinhos e peralvilhos, acabamos por passar momentos muito desconfortáveis, não é? Adiante.
No átrio, onde aguardei sereno mas ansioso pela chamada do oficial de justiça, encontravam-se mais quatro ou cinco cidadãos que não reconheci. Penso que nenhum deles me reconheceu também.
À hora marcada, três e meia em ponto, a justiça chamou-me. Estranhei a pontualidade. O diligente funcionário fez-me entrar na sala de audiências onde se perfilavam sentados, lado a lado, três magistrados de ar cinzento e sábio. Pelo canto do olho direito consegui perceber que a sala se encontrava praticamente vazia. Pelo canto do olho esquerdo consegui divisar dois indivíduos de sobrancelhas grossas e calvice acentuada que marcavam presença com ar desconfiado e conspirativo. Não reconheci nenhum deles.
Plantado em frente ao triunvirato pelo oficial de justiça que me havia encaminhado ao banco dos réus, aguardei. Depois de segundos de incerteza, que mais pareceram uma eternidade, fui mandado sentar pela justiça. Assim fiz. Apenas o magistrado do meio falou:
- Como se chama?
- Relaxoterapeuta, meritíssimo.
- Ah, tem nome… e bilhete de identidade? E número de contribuinte?
- Também, meritíssimo.
- Estou a ver! Onde mora?
- No Casal da Formiga, meritíssimo.
- Sabe porque é que aqui está?
- Não faço a mínima ideia, meritíssimo.
- Parece que o senhor anda a escrever umas coisas… Tem ideia do transtorno que causa escrever coisas ocultando a face?
- Meritíssimo, apenas escrevo o que penso, quando acho oportuno.
- Ah! E pensa, e tudo! Deixe-se de rodriguinhos e diga-nos lá o que esconde! O que ambiciona afinal?
- Mas, meritíssimo, não escondo nada. O que escrevo é aquilo que sou, apenas.
- Tem alguma coisa de mais substancial a contar-nos?
- Meritíssimo, sou um homem simples. Não sou letrado nem culto, apenas tive bons pais e bons companheiros. Não ambiciono mais do que viver uma vida feliz, os meus vizinhos do Casal da Formiga podem testemunhá-lo. Sou sócio dos bombeiros e do Império, gosto de partilhar o pouco que tenho e nunca chamei a ninguém de cobarde, pedante ou ressabiado, sem ser olhos-nos-olhos. Mas já dei e levei uns murros nas trombas. Perdão, estou-me agora a lembrar, uma vez chamei “vaca de merda” à minha ex-mulher, mas isso foi no calor dos pós-separação, depois de ter descoberto que a desgraçada antes de partir, por vingança, me tinha partido uma garrafa de Barca Velha e colocado à disposição do Piruças, o cão de um vizinho meu, um Pata Negra que me tinha custado os olhos da cara. E essas coisas custam muito, meritíssimo! Felizmente não tocou nas Ginas...
- Continua pois a relativizar a situação! Pensa que pode brincar com a justiça, é?
- Longe de mim tais pensamentos, meritíssimo! Mas afinal o que há contra mim?
- Um processo.
- De intenções?
- O senhor me dirá…




33 – Na pretérita semana houve fumaça


Marinha Grande, 09 de Abril de 2010


Na pretérita semana, a da Páscoa, a única do ano em que o meu afilhado Luís Eduardo, um mimoso e viçoso rapaz na casa dos trinta e sete anitos ainda virgens, tem o seu assomo anual de memória a respeito da minha medíocre existência, lá se cumpriu uma vez mais a insalubre tradição de extorquir o dízimo ao padrinho. O asno, atributo que aproveitou por via genética da sua tia e minha ex-mulher, a azémola Cintinha de Jesus, veio como de costume ao Casal da Formiga, de forma desinteressada está-se mesmo a ver, ansioso por me esganar a carteira. A contra-gosto lá tive de me desfazer duma nota das gordas e dum folar de dois ovos que a vizinha Carminda simpaticamente me tinha oferecido, sem segundas intenções – “olhe que fui de propósito às Figueiras, ao Quintino, para lhe trazer este folarzinho, que é uma categoria”. Se a pobre senhora lhe sonha o fim, ainda tem um fulminante achaque. Justamente.
Mas, caros calhandreiros, não foi por certo para falar do asno, nem da azémola, que hoje vim a terreiro. Não. O que me fez verdadeiramente fazer saltar a carica na pretérita semana, foi o habitual, um recital de folclore pífio, nas barbas do agonizante Titanic. A pique. Pois justamente.
Na pretérita semana, no mesmo dia em que o Constâncio do Banco, de olho pisco e pinta de merceeiro, sacando do lápis preso atrás da orelha, revia em baixa, mais palmo menos dedo, a sua projecção para o desempenho da economia em 2010, prevendo agora um robusto crescimento de 0,4 por cento, ardilosa metáfora para nos revelar que se a coisa não acelera o FMI faz um intervalinho na Grécia, onde se encontra diligentemente a puxar o autoclismo, e num pulinho vem por aí abaixo limpar o cuzinho aos meninos, as modernaças têvês brindaram o povo sereno e porreirinho, em horário nobre, com uma generosa dose de cromos da bola. Fumaça, digo eu que me estou perfeitamente a cagar para o Vieira e para o Costa. Fumaça e ponto final, parágrafo!
Ao ritmo do tremoço e da cervejola, os popularuchos presidentes subiram ao ringue das audiências para espalharem magia e arrotos de gás carbónico. E o povo, esse indulgente juiz, rendido à epifania mandou a crise para trás das costas e continuou a discutir os túneis, os penaltis, o filho-da-puta do árbitro e outras tantas realidades que nos condicionam o dia-a-dia, enquanto os Mexias se entretêm a utarem-nos com vazelima esterelizada. Fumaça, digo eu – fumaça!
Mas, a verdade é que, há qualquer coisa de grave que está a acontecer e que eu não consigo explicar. Como por exemplo aquele diálogo surreal que mantive esta tarde com a Lurdes Rata, a minha mulher-a-dias, que há pergunta – então Lurdes, como está o teu marido? Continua desempregado? – respondeu indiferente – “ora, tudo na mesma, cada vez menos dinheiro na carteira e mais ralações. Mas olhe, pelo menos nunca o vi tão satisfeito, diz que este ano é que é!” – é que é o quê? – retorqui – “então não sabe? Este ano o Benfica vai ser campeão!” - rematou.
Não sei, não sei, não sei. A coisa está ficar cada vez mais complicada e as forças e o discernimento começam a faltar-me. Não sei se emigre ou se eremite, não sei. Se calhar... se calhar... acho que tive uma ideia: vou suscitar a inconstitucionalidade do Tratado de Zamora. Isso, isso, pode ser que pegue e que volte tudo à estaca zero.



34 – Inveja Social


Marinha Grande, 19 de Abril de 2010

Desde pequenino que me habituei a ouvir dizer que tenho “maus fígados” e que sou rancoroso. É verdade, corroboro. Sobretudo quando a azia resulta daquilo a que o messiânico e multifacetado doutor do Abrupto, no seu superior estado de probidade um dia apelidou de “inveja social”. Nem mais! Sou compulsivamente um “invejoso social”, admito o vício! Pois por muito que tente não consigo esquecer os Mexias e quejandos, os que mamam as uvas e os que, ironicamente, mesmo tendo quota e feitoria na vinha, ficam de atalaia para confirmar se a uvas são mamadas até à grainha. Ao menos que nos deixassem “ir ao rabisco”, expressão utilizada pelo meu avô Serafim, quando no fim de uma jorna de vindima nos obrigava a passar a leira a pente fino, de cócoras, para apanharmos os preciosos baguitos que haviam caído. Mas nem isso - “está tudo congelado até novas ordens da administração!”. Punhetas duma figa!...
Ponhamos tudo em pratos limpos, de uma vez por todas: o que se passa nos privados não é coisa que me apoquente, são dores que não carrego. Agora quando nos toca a todos, aí sim, fico amofinado! Quando o Estado discute o quinhão com uns mas a outros estende-lhes graciosamente a teta engordando-os a leite e mel, até rebentarem a escala lipídica, aí sim, fico chateado, aborrecido mesmo, a-r-r-e-l-i-a-d-o, tal qual o Pinheiro de Azevedo quando foi sequestrado no parlamento. Desabafos…
Mas como em tudo na vida, há nesta descarada subtracção… perdão, nesta justa atribuição de “prémios de performance”, algo a reter, conclusões que os meus agastados neurónios vão arrumando na já atulhada prateleira dos insultos e dos ultrajes, ao ritmo do palavrório dos argumentadores e contra-argumentadores dos prós e dos contras. É que, ao contrário do que se possa pensar, o Portugal límbifero não é só paisagem meus caros, temos dos melhores gestores do mundo, uma raça autóctone de mamíferos que valem o que produzem, o que reproduzem e mais o que defecam, a peso d’ouro, upa, upa! Como diz o povo: “são poucos mas bons”! Mas coincidência das coincidências, geralmente esta fina-flor da estratégia, que saltita graciosamente de nenúfar em nenúfar, está à frente de empresas que, com o beneplácito do Estado, vivem da posição do missionário, subalternizando os tão defendidos e propalados valores liberais da sã concorrência e da mão invisível do mercado, que tudo estabiliza e que tudo regula, subjugando os consumidores a uma posição espúria de companhia de alterne, de usar e deitar fora, de “pagas e não bufas”. Mas há mais. Estas performances de mérito têm um único mentor e lugar-tenente – os gestores de topo – pois toda a maralha e camarilha que se lhes segue na pirâmide do organigrama, não pensa, não produz, não rentabiliza, não tem mérito. Nada! É por isso que essa casta de burros de carga, em vez que quinhoar nos ganhos, é “convidada” a fazer mais um furo na tira de couro que lhes cinge as calças, a bem da estabilidade e do futuro.
Confesso porém que há uma coisa que me intriga nisto tudo. Então e o topo da classe política, não protesta? Está tudo manso? É que comparados com estes gurus do lucro, os seus salários não passam de amendoins e de tremoços. Quer-se dizer, então os fulanos no topo da hierarquia do Estado, aqueles em que de tempos a tempos depositamos as nossas esperanças e a nossa confiança, vivem à míngua? Vivem da migalha e do rissol? Os tipos que meditam horas e horas a fio no PEC, na PAC, no OGE, na escolha dos gestores de topo a colocar no sítio certo, ganham um cinquenta avos dos seus subordinados? Dir-me-ão, é evidente que há aqui uma pequenina questão, que é a da p-e-r-f-o-r-m-a-n-c-e. Deixemo-nos de merdas: isso é apenas um pormenor... De uma coisa tenho a certeza, algo tem de mudar! - Cavaco, Sócrates, Ministros, Secretários de Estado, Deputados: o Relaxoterapeuta está convosco nesta luta! Força! Avancem sem medos! Exorto-vos a avançarem para a rua, por melhores salários, pela dignidade das vossas carreiras! Vamos fazer uma grande concentração em frente à sede da EDP e pedir a cabeça do Mexia. E não se preocupem com a logística, está tudo previsto: o Sérgio Moiteiro leva as bandeiras negras, o João Paulo leva o megafone e eu levo o curriculum. É que se o Mexia cair, alguém tem de o substituir, não é? E eu estou aqui com uma ideias para a EDP que acho que iam resultar. Qual é a dúvida? Pois se até o Artur de Oliveira chegou a vereador, porque é que eu não hei-de chegar a gestor milionário da EDP?


35 – Alvorada


Marinha Grande, 25 de Abril de 2010

Esta madrugada, atravessada pela esperança e pela lancinante insónia que me consome parte da existência, vigiei. Dei por mim sentado no cadeirão da sala a ouvir o rádio, o mesmo rádio que escutei horas a fio há 36 anos com o Manel, o Zé e o Chico, eternos companheiro de viagem.
Esta madruga, sozinho nesta incógnita casa do lugar do Casal da Formiga, na era da ciência e da tecnologia, dei por mim a ouvir o velho rádio a válvulas e a pensar alto: supremo bem este que conquistámos – A LIBERDADE!
Mesmo que o conciliábulo nos faça vaguear no torpor dos dias, mesmo que a inquietação nos tolha a abnegação, ignorar esta conquista seria, enfim, desonrar a coragem de tantos e ignorar este bem precioso. É pouco? Às vezes parece… Mas nunca nada está acabado e nunca se morre em vão. Prefiro pensar assim a não respirar. "Deixem-me ser feliz, porra!"


36 – Alerta Rosa Alaranjado


Marinha Grande, 28 de Abril de 2010

Soaram as sirenes de alarme e o Casal da Formiga parou para escutar, de forma patriótica, o bloco central da junta de salvação nacional. Inaudito.
De olhos bem abertos permaneci colado ao televisor, como uma criança que aguarda o castigo por se ter portado de forma inconveniente diante das visitas, para ouvir a declaração conjunta dos dois lindinhos, o interino e o candidato, que reuniram hoje de emergência para responderem veementemente (pufff…) ao ignóbil ataque especulativo das agências de rating, uns tipos porreiros que classificam as dívidas das nações com a mesma notação com que os produtores de frigoríficos classificam a eficiência energética dos aparelhos que produzem. Ciganices.
Os lindinhos, previsivelmente, comportaram-se como aqueles patrões que mandam reunir a canalha para anunciar que as vacas vão ter de jejuar face à escassez de palha e aos proibitivos preços da ração:
“Meus senhores a situação é muito grave e tem de ser tratada com pinças. A partir de hoje vamos ter de cortar na mesada, o papel higiénico passa a ter dois lados, vão começar a ir em grupos à retrete para só terem de puxar o autoclismo uma vez, atenção aos desperdícios com a fita-cola, acabaram-se os agrafos e os clipes, e se quiserem escrever tragam esferográficas de casa pois isto não está para brincadeiras!”
“Ó chefe, então e o leasing para o carro novo e aquele negócio da casa do Algarve, sempre são para avançar?” – pergunta um caramelo do escritório armado em diligente sindicalista de algibeira.
“Isso é outra conversa… isso são investimentos inadiáveis, indispensáveis para a estratégia que desenhei, para uma imagem e sinal de solidez e confiança que há que passar aos mercados, e para a boa performance empresarial de quem vos sustenta a família todos os meses!… Ou será que preferem que tenha uma depressão e fuja para o Brasil?”
Grande porra é o que é! Eu bem que andava desconfiado que ter um xerife com nome de filósofo grego era mau presságio…



37 – Uma Nesga de Oportunidade


Marinha Grande, 29 de Maio de 2010

Inspirado pelas mais profundas, insuspeitas e genuínas preocupações, do Senhor Presidente da República Portuguesa, do Senhor Primeiro Ministro, do Senhor Ministro das Finanças, do Grupo dos Antigos Ministros das Finanças, dos Alunos de Apolo, dos três pastorinhos, do metalúrgico Jerónimo, e vigilantemente atento aos inquietantes sinais dos mercados, ao raspanete da angélica Merkel e às mais recentes sessões sado-porno da Standard & Poors, da Moodys e da Fischer, tudo em horário nobre, aquiesci e entrei em meditação transcendental, procurando no ronco das vuvuzelas e no discurso redondo dos insuflados mundialistas, já coroados de pré-campeões, a resposta para as minhas inquietações e mais para as angústias do Folha Seca.
Apesar do aparato da intricada equação e de toda a disponibilidade a que me predispus para a dita meditação, a verdade é que a conclusão final não demorou mais de um frame, uma flashada de polaróide – “Rapaz, o buraco é tal que nem a Sondalis tem capacidade para perfurar tão fundo. Estamos literalmente quilhados se não mudamos de rumo e a responsabilidade, por acção ou omissão, é geral! Ah pois é!”. Pacífico.
E ainda o flash não se esfumara, como digno descendente da turba de desenrascadinhos que habita há oitocentos anos, e de forma por vezes bastante dolosa, o extremo ocidental do velho continente, já me ocorria a solução mais rápida e eficaz contra os problemas crónicos da falta de liquidez e do desvario despesista do reino. A célebre e premonitória frase do Botas, grunhida em Maio de 61, ressoou na minha cabeça como um trovão - “Para Angola e em força!”. “Somos uns revivalistas dos caraças” – pensei eu. Afinal de contas, e apesar de tantos séculos de cabeçadas no tijolo, a solução não tem sido sempre a mesma, pergunto eu? Expulsámos os mouros e apropriámo-nos da sua tecnologia, fomos sacar as especiarias à Índia, gamámos o ouro, o Deco, o Pepe e o Liedson ao Brasil, o Eusébio a Moçambique, fanámos os fundos comunitários à Alemanha e à França, a vuvuzela aos zulus, e por aí adiante. Nosso, mesmo nosso, só estou a ver aquela padeira que vivia na zona da Batalha e o inefável Mourinho. Bem, mas, verdade seja dita, até mesmo o Mourinho teve de ir gamar o nome aos berberes e a determinação dos campeões ao Olimpo. Afinal, de genuíno, genuíno, só temos mesmo a padeira -concentremo-nos por isso na determinação da padeira e esqueçamos por momentos o Estado gorduroso, o Estado que frita em lume forte na sua própria banha, queimando-nos de forma desleixada com salpicos de unto fervente, inflingindo dor e sacrifício aos rapa-o-tacho.
Ponto de ordem à mesa: afinal de contas, ontem, tal como hoje, o problema é de sobrevivência e de independência, diria mesmo, de LIBERDADE. Porque não “temos”? Não! Simplesmente porque não “somos”, porque nos recusamos a “sermos”. E é aqui que, citando o nosso vizinho e deputado carteiro, eu vejo uma “nesga de oportunidade”. O apelo que uma vez mais aqui faço à massa cinzenta, ao esforço e à vontade, tem tanto de inocente como de autêntico. Podemos de facto não “ter”, mas podemos seguramente “ser”, pois tudo o resto virá por acréscimo. Toda essa nesga que vislumbro para nos livrarmos da aflição sustentada dependerá de nós e da maneira habilidosa como soubermos encarar o futuro e manejar a pá do forno que a valente padeira nos deixou testamentado. Haja por isso a coragem de enfrentar os nossos próprios medos e limitações, ideologicamente entranhadas por anos e anos de rangomango e de indiferença desleixada. Façamos por uma vez o exercício simples de querer de forma consciente o melhor para todos.

Foi por tudo isto, por imperativo de consciência e por querer tomar a minha parte nas dores da resolução do problema, que chamei ao Casal da Formiga a Lurdes Rata, a minha mulher a dias, para lhe transmitir de viva voz, com a gravidade própria do momento mas com uma centelha de esperança no olhar, as medidas de austeridade que decidi eu mesmo adoptar: “Lurdes, quero que saibas que te considero muito e que és para mim como família. Como sabes vivemos momentos de dificuldade e depois de muito pensar decidi que vou ter de cortar no que te pago à hora, um esforço a bem da nação e que espero que compreendas”. Lurdes Rata, que não é mulher de se ficar, fixou-me de frente com raiva e com voz rude soltou -“e sabe que mais? Passe você as camisas a ferro e vá barda-merda mais a crise!”
“C’uma porra” - pensei eu tentando recompor-me, lá voltei a ter uma recaída neo-liberal de pequeno-burguês. Volta e meia está-me a acontecer. Tentei contudo consolar o ego com a costumeira saloiice – será um problema de comunicação? Será que não fui capaz de fazer passar a mensagem? Só pode…



38 – Em Busca da Credibilidade Perdida

Marinha Grande, 20 de Outubro de 2010


Podia ser o título de mais uma sequela de Indiana Jones, mas infelizmente não é…

Podia ter acontecido em Castro Verde ou em Aljustrel, mas não, foi no deserto do Atacama, no extremo norte do Chile, a milhares de quilómetros do Casal da Formiga.
Podia ter vindo de Lisboa, mas não, veio das entranhas da terra chilena, a mais de setecentos metros de profundidade, o grito de esperança que nos fez sentir os olhos baços e as mãos trémulas, um grito que nos fez por algumas horas levantar os olhos do chão e olhar fixamente para o ecrã, acompanhando o resgate dos mineiros com um nó no estômago e um estranho sentimento de proximidade, quase familiar. Era como se o resgate daqueles homens, nada diferentes de outros que morrem todos os dias em anónima agonia, se tivesse tornado num imperativo de consciência colectiva, mesmo para aqueles que, tal como eu, nada podiam fazer. Era como se a esperança deles e a das suas famílias, fosse a nossa própria esperança, uma vital necessidade de acreditar.
Assisti à maior parte da operação de resgate pela televisão, acompanhado pelo meu bom amigo e vizinho Aurélio, quase sempre em silêncio, expectantes, desejosos do fim do pesadelo, ansiando por um brinde sentido, a oblação em sacrifício, aos deuses e aos homens, de um soberbo reserva de Clos Apalta, um puro sangue chileno. Coisas do profano.
Para nós, que partilhámos horas a fio as angústias e as emoções deste mediático episódio, que em breve se esfumará na sua própria bruma, na espuma dos tradicionais argumentos de êxito de bilheteira e nos reclames de lâminas para homens de barba rija comprados a peso de ouro, emergem duas grandes lições a que vale a pena dispensar, para breve análise crítica, um ou dois minutos e os dois dedos de testa com que o criador nos equipou o cocuruto - se é que a sua generosidade foi extensiva a todos os mortais. Por um lado a coragem, a vontade e a determinação dos mineiros em quererem sobreviver, viver, respirar, emergir, abraçar. Mas por outro, a inabalável confiança que depositaram em quem lhes prometeu e se comprometeu em devolver-lhes a vida, uma nova oportunidade, um resgate das profundezas, do pesadelo, a confiança em quem lhes garantiu que não os abandonaria. É isso, eles tiveram coragem porque tinham confiança. Eles tiveram esperança porque acreditaram. E é esse o nosso drama. Porque nos sentimos aprisionados nas entranhas deste país à deriva e já não acreditamos naqueles que nos prometem, pela enésima vez, que nos hão-de resgatar. Já não cremos que os sacrifícios e as privações nos conduzam a lado algum. Mas afinal como podemos nós confiar nessa gente? Não são os mesmos que foram provocando as sucessivas derrocadas?
Porque infelizmente Castro Verde e Aljustrel não são no deserto de Atacama, e que se saiba, há muito que por cá não emergem políticos da mesma colheita de Sebastián Piñera, é que este vosso anónimo paisano acha que temos um gravíssimo problema de credibilidade. Perdida! E não se vislumbra solução.