20/10/14

Arte e Manhas



Enquanto beberrico um pequeno cálice de ponche, tento em vão concentrar-me. A escrita não se compadece com o turbilhão de ideias e mensagens que gravitam  em torno do cérebro, que chocalham dentro do cérebro. Muitas vezes o problema nem é de “inspiração”, é de síntese. A fronteira entre a verborreia e a legibilidade é tão ténue, que até a inocente cantilena que Lurdes Rata ensaia à capela enquanto engoma as camisas da semana, um dos clássicos da vasta obra de Tony Carreira, se torna num obstáculo quase intransponível. – Tá calada mulher! – grito eu da sala. Lurdes acusa o toque e manda-me à merda, de caminho. Faz-se-me luz – é isso mesmo, é por aí que devo começar: “este Orçamento de Estado é uma merda!”. A adjectivação não é iconoclasta, é mesmo biológica…

Goebells, ou até o trapalhão Mohammed al-Sahhaf, não fariam melhor. A propaganda aos supostos méritos do OGE de 2015 está na rua e faz o seu imperturbável caminho, acolitada por zarolhos, coxos, comentadores, peritos e videntes. As rotativas não dão tréguas e as parangonas sublinham o jackpot: “Cada filho vale 925€ no IRS” (Correio da Manhã); “Alívio fiscal nos salários já em 2015” (Jornal de Notícias); “Pensões médias e altas pagam menos” (Jornal de Negócios); etc etc, etc; apenas a Nova Gente, quase sempre atenta ao mais ínfimo pormenor, prefere um caminho bem mais tortuoso mas não menos aliciante, revelando aos seus leitores segredos de alcova da viçosa monarquia: “D. Duarte tem hipoteca no BES” … apenas ficou por esclarecer se no bom, ou no mau… detalhes…
Não fossem os perigosos marxistas-leninistas, comunistas empedernidos e maoistas ressabiados, Bagão Felix, Manuela Ferreira Leite e Pacheco Pereira, a desalinhar, e a procissão seria um passeio pelos media. É inaceitável a forma despudorada como a ministra Luis e os restantes cobradores do fraque, que parece ainda gozarem de boa imprensa (pasme-se), passam uma esponja meio húmida sobre o brutal aumento de impostos, que não vê alívio, sobre a incompreensível fixação de um limite para os apoios sociais, sobre o fim da clausula de salvaguarda do IMI, sobre os inqualificáveis cortes na despesa (com o epíteto de “poupança”), que mais não são do que um desinvestimento colossal nas primordiais funções do Estado (educação, saúde, etc), sobre a tramóia da “fiscalidade verde”, uma espécie de colecta fofinha, ecológica, moderna, que mais não visa do que extorquir o pouco que sobra à carneirada, sob a capa de supostas preocupações de sustentabilidade ambiental. E no topo do monte de esterco, voilà, a poia ainda fumegante: [o orçamento para 2015] “é fiscalmente mais moderado” (dixit Mr. Harry Porttas, ex-defensor dos reformados, dos espoliados, dos contribuintes, dos encalhados e dos portadores assintomáticos de cálculos renais).
Mais uma vez o traço ideológico do orçamento não deixa dúvidas à alvura do algodão e a nova baixa da taxa de IRC sintetiza essa preocupação para com os que mais sofrem com a crise – os grandes contribuintes de IRC, na sua maioria empresas em regime de monopólio ou semi-monopólio, e que também na maioria dos casos não se dedicam à produção de bens transaccionáveis, muitas delas exercendo inclusivamente actividades especulativas. Sejamos sérios, em que é que se traduz a baixa de IRC? Apenas numa coisa muito simples e óbvia, num alívio fiscal para os que mais deveriam contribuir e numa sobrecarga para os do costume. Mas porventura alguém com dois dedos de testa associa a baixa da taxa de IRC na actual conjuntura, à competitividade, ou ao investimento, ou à criação de postos de trabalho? É que se assim fosse, a baixa de IRC de 2013 para 2014 já estaria a produzir efeitos.
Verdade seja dita, quaisquer que fossem as medidas para 2015, haveria sempre por onde pegar. Porque se por hipótese, meramente académica e inverosímil, este governo de saloios diminuísse a carga fiscal, só provaria que tudo o que fez desde o início foi errado, conforme já o reconheceu, o ex-futuro boy do FMI, Vitor Gaspar.
Passos & Portas, as duas faces da moeda deste governo sem crédito não são, de facto, fundamentalistas orçamentais, são apenas cretinos orçamentais. Em bom.


6 comentários:

  1. Como um simples "vai à merda" pode inspirar um texto tão assertivo.

    Excelente!
    Abraço

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  2. Pois é caro Rodrigo, como dizem os gurus da gestão, temos de saber transformar as ameaças em oportunidades.

    Abraço!

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  3. A. Constânciooutubro 21, 2014

    Textos destes têm que ser divulgados. Vou partilhar, com a sua licença.

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  4. Caro A. Constâncio,
    eu é que agradeço a partilha. Os textos são da minha autoria mas não são meus. São de todos os que os queiram partilhar.

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  5. Gosto de o ver por estas bandas, caro Grizalheiro! Afinal de contas, não há festa sem bombos.

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