05/07/11

Estado: de graça?

Em resultado do meu feitio pouco ortodoxo, utilizando um disfemismo diria que, vejo-me sempre grego para respeitar um dos mais famosos cânones mofosos que a sonsice democrática apregoa no recobro pós-eleitoral, o afamado “estado de graça”. A ideia é a de olharmos para os líderes recém-eleitos com a mesma benevolência e o mesmo enlevo com que se olha para uma criança que dá os primeiros passos, ou que descobre os encantos de um novo brinquedo. Não consigo, é superior a mim, mesmo tendo em conta a actual situação. Não consigo desperdiçar o benefício da dúvida, que concedo por princípio a quem defende de forma inteligente e coerente ideias que não perfilho, quando vejo que se começa pelo mesmo lado de sempre – o da receita: 200 gramas de poeira para os olhos, uns raminhos de salsa nos ouvidos, dois ovos pelo cú acima, uma colher de óleo de fígado de bacalhau para acalmar a tosse, e passa para cá o-equivalente-a-metade-do-subsídio-de-Natal-acima-do-salário-mínimo-nacional, tudo na módica quantia de 800M de €uritos, que o Estado está para ter um fanico pós-socrático, que o Estado está que nem pode. Mais nada!
Atente-se porém no preciosismo da ilusão: o-equivalente-a-metade-do-subsídio-de-Natal-acima-do-salário-mínimo-nacional. “Ouve lá pá, mas para que queres tu receber dois ordenados num só mês, meu cabrão? Queres continuar a viver acima das tuas possibilidades, é isso? Queres continuar a comer bem, a vestir-te de marca, a besuntar-te com perfumes caros, a comprar electrodomésticos, telemóveis, carros em segunda-mão importados da Alemanha, a viajar para a República Dominicana, para Varadero, para descansares com os tomates de molho em praias tropicais, enquanto o Estado se afadiga a pagar-te a saúde, a educação, os transportes, a televisão, não é? Julgas que o Estado é de graça, é? Pois estás muito enganado, tótó! À conta das tuas loucuras, de viveres acima do que podes (que o gajo do banco bem te avisou quando te concedeu o décimo empréstimo!…), é que isto está como está! E agora? E agora, diz-me?!
Agora o Estado tem gorduras, está obeso, bojudo, untuoso, hipertenso, e precisa de ti. Por uma vez precisa do teu esforço, precisa que lhe pagues uma lipoaspiração e um peeling, porque anda a sair com uns gajos da troika que não lhe gostam da silhueta – “se não emagreceres não te saltamos para cima!” – não se cansam de repetir.
E afinal era tudo tão simples. Ou não. Bastava que da mesma forma, com a mesma solicitude e com o mesmo rigor com que o Sr. Eduardo e o jovem Pedro fizeram os cálculos da nova colecta, tivessem eles olhado por segundos para a outra face da moeda e nos tivessem dito: “sócio, sócio, isto agora vai mudar! Vamos acabar com a mordomia x, com o desperdício y, com o desvio z. E sabem quanto é que o Estado vai poupar com isso? Está quantificado: 800M de €uritos. É verdade, 800M de €uritos que não vamos ter de vos sacrificar, porque estamos aqui concentradíssimos a fazer a administração rigorosa e parcimoniosa da coisa pública. Ah pois é!”

Era bonito, não era? Era...


17 comentários:

  1. Caro Relaxoterapeuta,
    Diariamente visito o ”Conto do Vigário” na esperança de encontrar os seus escritos e neles, na ironia genial que usa, o complemento de ânimo para enfrentar a rude realidade dos dias. Não comento mais vezes apenas para não acrescentar ruído. Como diz um amigo que foi militar, “Oh pá! Eu conheço os postos”.
    Mas hoje não resisti ao seu “Estado: de graça?”, mesmo sem completar o sentido, por não estar disponível o vídeo com que inicia. Não posso estar mais de acordo. Como é possível haver “estados de graça” para aceitar as medidas de governantes que começam por fazer muito pior do que criticavam nos outros que quiseram apear?
    Este é o Governo do Presidente Cavaco, o que tinha que ser eleito à primeira volta para não fazer subir os juros. O que disse há dois anos e repete agora para os mercados ouvirem, que o país está numa situação incendiária. Estado de graça para o Cavaco das trapalhadas não explicadas, abafadas pelos votos? O Ex Primeiro Ministro que promoveu e subsidiou o abate das frotas e agora diz que temos que nos virar para o mar?, Que promoveu e subsidiou o abandono da agricultura e agora diz que temos que nos virar para a terra? O contabilista que mandou os comboios às urtigas e construiu auto-estradas com o dinheiro da CE e dos mercados, com que se deveria tornar a economia competitiva e reprodutiva?
    Não tenhamos ilusões, como li repetidamente, com o timoneiro Passos que nos calhou em sorte e a nossa ancestral apetência para a água, vamos rapidamente ultrapassar a Grécia e a Irlanda. Voltamos a ser o bom aluno que o Professor Cavaco enaltecia.
    Desculpe-me o desabafo.

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  2. Tal como "O Vento Norte", sou um confesso admirador da prosa do autor deste Blog e, no caso em apreço, este texto aviva-me a saudade do extinto Largo das Calhandreiras.
    Subscrevo na íntegra, sem sequer mexer na pontuação, o que Vento Norte acaba de escrever.

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  3. Caros amigos,
    agradeço as vossas palavras e a vossa generosidade.

    Relativamente ao suposto vídeo, há aqui qualquer coisa que me está a escapar, uma vez que quando ontem "postei", não o tinha incluído. Qual não foi o meu espanto quando hoje de manhã entrei no blog e lá estava uma coisa com ar vídeo, mas que não estava disponível. Tratei de o apagar e, pelo sim pelo não que isto mais parece coisa do Demo, de acender três velinhas, a saber: uma ao Senhor dos Passos, para que guie o seu homónimo, outra à Senhora de Fátima, para que faça o milagre de subir a notação da nossa dívida soberana, e a última para ver se vejo alguma coisa, já que me esqueci de pagar a luz este mês, e o Mexia não foi de modas.

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  4. Meus caros.
    Acho que tentar acrescentar algo ao texto do Relaxoterapeuta só ía estragar. Só dizer que já nem as velinhas nos safam... como diría o outro: Apreh!!!

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  5. Flor do Lizjulho 07, 2011

    Boa tarde,

    É isso mesmo, palavras para quê?

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  6. Tenho sempre alguma dificuldade em conseguir entender os textos à primeira leitura. Não acha que a tentativa de usar termos pouco comuns torna os textos herméticos e maçudos? A arte de escrever não tem necessariamente que ser igual à utilização de palavras caras. Dá a sensação que quando escreve tem ao seu lado um dicionário para colocar palavrões que ninguém usa no dia-a-dia.Nem Saramago escrevia assim e ele tinha uma escrita difícil.

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  7. Este post é do "Não me fecundem sff":

    Lutar com Palavras é a Luta Mais Vã

    Lutar com palavras é a luta mais vã. Entanto lutamos mal rompe a manhã. São muitas, eu pouco. Algumas, tão fortes como o javali. Não me julgo louco. Se o fosse, teria poder de encantá-las. Mas lúcido e frio, apareço e tento apanhar algumas para meu sustento num dia de vida. Deixam-se enlaçar, tontas à carícia e súbito fogem e não há ameaça e nem há sevícia que as traga de novo ao centro da praça.

    Carlos Drummind de Andrade, in 'Poesia Completa'

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  8. De quando em vez dou uma vista de olhos ao que aqui se escreve. Devo confessar que concordo com o que o anónimo disse. A tentativa de escrever bem, que aqui é apanágio, leva a que os textos não sejam de fácil leitura. Não consigo entender onde existe um 'disfemismo' no texto. 'Cânone mofoso' é o quê? Em que consiste 'sonsice democrática'? A ironia pode ser usada mas em texto que se perceba. Aqui não foi o caso. Lamento não vir dizer apenas bem mas acho que a língua portuguesa merece mais.

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  9. Vento Nortejulho 08, 2011

    Oh "Não me fecundem sff", assim o outro anónimo volta a não entender. Um desenho era mais eficaz.

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  10. Basta fazer isto para que o texto seja perceptível por todos e não apenas por alguns. Escrever bem é uma arte não acessível a todos.

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  11. Caros amigos,
    tanto a forma como o conteúdo são objecto de crítica.
    Confesso porém que preferia ver discutido o conteúdo à forma, uma vez que o conteúdo é ideológico e a forma é estética.
    Concordo que a língua portuguesa merece muito mais. Talvez por isso, como alguém refere, me esforce na tentativa de escrever bem. Ingloriamente? Talvez… Se porventura não consigo, acreditem que não é por falta de vontade. Será certamente por falta de engenho e arte.
    Há contudo uma crítica que não entendo – o uso de palavras menos habituais.
    Felizmente o nosso vocabulário é muito rico, e se há coisa de que gosto na escrita, é o “sabor” das palavras, a “textura”, a sua sonoridade e a sua combinação rítmica. É por isso, e por todo o amor que tenho pela língua mãe, que procuro que este meu esforço/tentativa de escrita, sirva (pelo menos) para revelar ou para relembrar alguns desses tesourinhos – as palavras.
    Já quanto à questão da hermenêutica, tenho alguma dificuldade em pronunciar-me. Até porque, a iliteracia é um dos mais preocupantes sinais dos tempos.

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  12. Não me fecundem sff.
    (meu caro, não consigo colocar o nome/URL)


    Mais nada... Para bom entendedor...

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  13. Pois....
    Tivemos um momento de animação com um anónimo que deve estar a precisar de umas massagens "relaxantes" ao seu petrificado cérebro.
    Foi giro.
    Não gosta, não leia.
    Eu gosto.

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  14. "Não me fecundem sff"

    Só mais uma achega:

    DEMOCRACY

    There is no scape.
    The big pricks are out.
    They’ll fuck everything in sight.
    Watch your back.

    Harold Pinter (Prémio Nobel da Literatura,2005)

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  15. ó Não me f......
    Agora fico eu à rasca. Tenho que ir buscar o dicionário de Inglês/Português.

    Agora a sério.
    De facto ler e sobretudo, perceber os textos do Relaxoterapeuta nem sempre é fácil, o que não é de agora. Confesso que dada a capacidade de sintese a "fina ironia" a capacidade de escrever nas entrelinhas, obriga-me a algumas vezes a ler, reler e voltar a ler o texto. O mal será do autor? Não! O mal é meu. Insuficiência que vou ultrapassando por cada texto publicado. Por isso meu caro Relaxoterapeuta,escreva, escreva até que o teclado lhe doa.
    Abraços

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  16. O Dr. Passos Coelho quis procurar espaços para a papelada lá nos gabinetes e em vez dos anunciados esqueletos nos armários, apesar de não se querer desculpar com o passado, disse que encontrou a tal tanga modelo Cherne que o Dr. Durão Barroso compadecidamente despiu do país quandi substituiu a mísera indumentária da Nação por um Armani flamejante e adereços da Tifany, antes de fugir para Bruxelas.
    É bom sinal, pode ser que a exemplo do outro, também este se faça convidado para ocupar um qualquer lugar onde os verdadeiros donos da Europa necessitem de colocar mais uma milionária figura de cera. Espero, é que até lá não se entusiasme no apoio à invasão de qualquer país antipático, que decida ameaçar a hegemonia do Dólar na cruzada contra o Euro e o ouro.

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  17. Queria dizer-lhe que me fez bem vir aqui ao seu blog. Li vários textos, entre eles alguns textos apócrifos :D

    Fez-me rir. E eu gosto de rir.

    Fiquei convicta que o senhor também se diverte enquanto vai descrevendo as suas aventuras e desventuras. Isso é muito saudável.

    O senhor escreve bem.

    Gosto do seu jeito de escrever. Usa de um rico e vasto vocabulário, e termos que me sugerem que leu muitos autores portugueses de finais de séc. XIX e princípios do séc. XX. Verdade ou não, fiquei pelo menos com essa ideia.

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